‘A novela do gordo entalhador’. Clássico do séc. XV chega a Portugal

Publicada originalmente em 1480, ‘A novela do gordo entalhador’, escrita pelo matemático, humanista, astrónomo e arquiteto florentino Antonio Manetti, biógrafo do arquiteto renascentista Filippo Brunelleschi, é agora editada pela Tinta-da-China, numa versão traduzida e anotada pelo historiador André Belo, que chega às livrarias na próxima quinta-feira.

Acompanham esta novela, três outras mais pequenas, retiradas do ‘Decameron’, de Boccacio, “grande mãe do género novelístico europeu” em que a narrativa de Antonio Manetti se filia, como explica André Belo.

A conspiração contra o entalhador Manetto Ammannatini, conhecido como “o Gordo”, que durante uns dias o expropriou de identidade, levando-o a autoexcluir-se da comunidade e a exilar-se de Florença, existiu realmente e foi planeada e executada no ano de 1409, na cidade italiana de Florença.

A história centra-se num grupo de “homens de bem”, à frente dos quais estava Filippo Brunelleschi, que anos mais tarde seria responsável pela construção da cúpula da catedral de Florença, Santa Maria del Fiore, um marco na história da arquitetura pela dimensão e técnica de construção.

Entre os seus cúmplices, contava-se outro famoso artista florentino, o escritor Donatello.

Estes artistas e membros da alta sociedade florentina jantavam frequentemente juntos, mas certa noite Manetto, o Gordo, não compareceu ao jantar, sem dar justificação, o que foi entendido pelos seus pares como uma desfeita, uma forma de insolência e de presunção.

Como retaliação, decidiram fazê-lo pagar pelo que entenderam ser uma falta de respeito a um grupo cujos membros “eram quase todos de melhor qualidade e condição que ele”.

Urdida por Brunelleschi, que convence os outros de que Manetto é suficientemente simples para acreditar na patranha, a partida começa logo no dia a seguir ao jantar e consiste em fazê-lo crer que se tornou outra pessoa.

Primeiro começa a ser tratado por Matteo, por todos à sua volta, depois é preso por dívidas contraídas pelo mesmo Matteo, situação só possível com a conivência dos membros do sistema vigente na altura, incluindo do tribunal e da prisão, e com a participação dos irmãos do (verdadeiro) Matteo e outras figuras de prestígio social.

A burla entra numa nova fase quando o Gordo é retirado da prisão, através de uma suposta fiança paga pelos irmãos, que o levam para casa, dão-lhe jantar e drogam-no.

Profundamente adormecido, é levado para sua casa, onde mudam as coisas de lugar e o deitam na cama virado ao contrário.

Quando acorda, o Gordo acredita ter voltado a ser quem era, embora sempre assaltado pela incerteza, adensada pelo facto de o verdadeiro Matteo contar uma versão simétrica do que aconteceu: que se tinha transformado no Gordo, ao mesmo tempo que ele, Gordo, se transformara em Matteo.

A confusão mental em que o jovem entalhador mergulha, só se desvanece quando descobre que tudo não passou de uma farsa, para mais congeminada por Brunelleschi, a quem ele tinha por amigo e modelo.

A única saída que encontra para fugir da humilhação é ir-se embora de Florença: parte para a Hungria, onde acaba por conseguir sucesso e riqueza, regressando depois várias vezes à sua cidade italiana, mas sem nunca se conseguir reintegrar.

Para André Belo, este é um texto fascinante, mas também inquietante.

Fascinante porque trata da questão do desdobramento e crise do sujeito, numa época que não se associa a essa reflexão, tendo representado uma prefiguração de obras de escritores modernos como Pirandello ou Fernando Pessoa.

Por outro lado, é abordada a melancolia do protagonista, enfatizada em “pequenos mas expressivos monólogos”, que levam a pensar no ‘Hamlet’ de Shakespeare.

Finalmente, o que acontece ao Gordo não deixa de fazer lembrar a situação vivida por Joseph K. em ‘O processo’, de Kafka, explica o historiador.

O que o historiador considera inquietante é a possibilidade de a nossa identidade individual depender de um consenso social: “Sem a comunidade que nos rodeia e que nos conhece – quem somos, a começar pelo nome que temos, a profissão, o estatuto e mesmo os bens que possuímos, a casa, o trabalho – a nossa existência” fica posta em causa.

André Belo conta, na intodução da obra, que foi enquanto investigava para escrever o livro ‘Morte e ficção do rei Dom Sebastião’ (editado pela Tinta-da-China em 2021) que se deparou pela primeira vez com esta novela, tendo ficado, desde então, com o desejo de a traduzir e dar a conhecer aos leitores portugueses, na redação atribuída a Antonio Manetti.

Antonio Manetti ficou particularmente famoso por esta novela e por se ter dedicado a investigar os locais mencionados no ‘Inferno’ da ‘Divina Comédia’, de Dante.

As três novelas mais curtas que completam este pequeno volume relatam também partidas, mas “menos cruéis” do que a que o Gordo sofreu, adianta André Belo.

Estas novelas fazem parte da obra ‘Decameron’, escrita como ficção de fuga literária em tempos de pandemia, a da Peste Negra de 1348.

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