A retoma pode chegar demasiado tarde para alguns DJ voltarem à cabine

Mais de um ano depois do início da pandemia, ainda não se vislumbra um futuro regresso à animação noturna, nem se sabe em que moldes vai acontecer, quais os preços que vão ser praticados ou quantos clubes e discotecas resistiram a mais de um ano sem faturação provocado pela pandemia, que suspendeu quaisquer celebrações feitas numa pista de dança.

No verão de 2020, com esplanadas, restaurantes e cafés abertos, os DJ conseguiram alguns trabalhos, mas em menor quantidade e com ‘cachets’ mais reduzidos. Com poucos rendimentos, socorreram-se dos apoios disponibilizados pelo Estado, que criticam por serem baixos e confusos, da ajuda de amigos e familiares e das poupanças que tinham.

Tiago André, conhecido como A Boy Named Sue, começou a atividade em 2001, em Coimbra, e vive do ‘djing‘ e de ser ‘roadie’ de The Legendary Tigerman.

“Os primeiros meses foram muito complicados porque não se podia trabalhar. Depois, de repente, tudo abriu, no verão passado, e fez-se versão DJ restaurante, DJ esplanada. Os ‘cachets’ passaram para um terço, mas eu percebo que os donos tinham uma lotação e horário limitados e não faturavam o suficiente para pagar o que pagavam antes”, conta à agência Lusa Tiago André, hoje a viver em Lisboa.

O DJ refere que houve trabalhos que fez “por uma questão de sanidade mental”.

“Mesmo sem ganhar muito dinheiro, é isto que sei fazer. É nisto que eu sou bom e queria trabalhar e ver as pessoas, e ajudar as casas [os bares e clubes]. Houve um sentimento de entreajuda”, recorda.

Tiago André teve direito ao apoio à redução de rendimento por parte dos trabalhadores independentes, de 292 euros, em março, e 438 euros, durante os cinco meses seguintes.

“A minha renda era de 400 euros. As contas são mais do que 38 euros. Esse apoio não dá. Ficas a negativos, ficas sem dinheiro para nada”, salienta.

Tiago ficou sem receber apoio em setembro, face a um processo de pedido de apoio que considerou mal explicado e mal comunicado, e desde outubro que tem recebido cerca de 400 euros de apoio todos os meses.

Apesar disso, A Boy Named Sue conseguiu aguentar-se, “sempre em serviços mínimos”, até janeiro.

“A partir de janeiro, estou a receber ajuda dos meus pais. A minha mãe é a minha segurança social. Tenho sorte, os meus pais têm um pé-de-meia, mas muita gente não tem”, frisa.

Com a perspetiva de que vai ter um ano de 2021 “igual ao verão” de 2020, sem discotecas e com esplanadas com limite de horário, Tiago acredita que será “mais um ano a contar os trocos”.

“Já pensei várias vezes em arranjar um emprego a fazer outra coisa”, admite, salientando que já está “abaixo da tona“.

André Soares, conhecido como Señor Pelota, deita-se e acorda “todos os dias” a pensar em encontrar outro emprego.

Para o DJ de Lisboa, a história dos apoios do Estado também “não é uma história bonita”, criticando o facto de a própria profissão não ser reconhecida pela Autoridade Tributária, não havendo sequer um Código de Atividade Económica (CAE) dedicado a este trabalho.

No início da pandemia, tal como A Boy Named Sue, André Soares recebeu 438 euros mensais por parte da Segurança Social (SS).

No entanto, em 2021, ainda só recebeu um apoio de 219 euros relativo a janeiro, tendo começado a descontar 65 euros para a Segurança Social desde dezembro – contrapartida para poder receber o apoio da SS.

Em 2021, já pagou quase tanto quanto aquele que recebeu.

“Estou à espera de resposta a dois pedidos de apoio”, acrescenta, referindo que o apoio no âmbito das ajudas no setor da cultura foi-lhe negado, devido ao seu CAE.

“Sentimos um grande abandono”, desabafa.

Já Sheri Vari, nome artístico de Mariana Cruz, de 31 anos, recebeu o apoio de fevereiro – cerca de 200 euros, ao contrário dos 400 que recebia em 2020 -, e não percebe “porquê”. “Foi reduzido a toda a gente”, conta a DJ de Lisboa.

Durante a pandemia, recorda que chegou a receber propostas sem ‘cachet’ que não aceitou e acabou por arranjar um ‘part-time’ noutra área, em outubro, em que faz gestão das redes sociais de uma empresa, onde recebe 300 euros.

“Aguentei contando os trocos. Felizmente, eu tinha comprado casa há quatro anos e foi adiado o pagamento de empréstimo e não estou a ter essa despesa. Não tenho de pagar mensalmente o crédito – só por isso é que me aguentei”, aclara.

Com o confinamento, sente-se “mais desligada”, mas, todos os fins de semana, não dispensa “uma noitada caseira”, tendo-se também virado para a produção da sua própria música.

“Tento manter-me positiva para quando isto abrir, e ter alguma coisa para mostrar quando isso acontecer. Há dias mais complicados, outros não, mas tento ter esperanças em que consiga continuar a ter este trabalho, porque, na verdade, é aquilo que sei fazer mesmo bem”, realça.

Sobre os discos, diz que nunca pensou em vendêlos.

“A música para mim é tudo – o primeiro canal da minha felicidade são os meus discos”, vinca.

Já André Soares, que chegou a ter uma loja de música, para fazer face às despesas, acabou por ter de se virar para aquilo que lhe era mais querido: os discos.

“Estou a vender discos desde o início da pandemia. Tenho uma coleção com mais de 20 anos. Se calhar, há discos na coleção que já tiveram o seu tempo. Nunca tinha pensado em vender, mas houve aqui esta motivação extra”, disse.

Para o DJ, “é uma decisão difícil, mas inevitável e lógica, porque ligas o modo de sobrevivência”.

“Já pensei em vender discos. Ainda hoje pensei seriamente nisso”, conta Wilson Vilares, DJ responsável pelo projeto CelesteMariposa.

Face à pandemia, já teve de pedir dinheiro emprestado a amigos e teve de sair da sua casa em Lisboa e voltar à casa da mãe, em Almada, sem possibilidade de continuar a pagar a renda que pagava.

“Nunca tinha pedido dinheiro a ninguém, além da família. E depois chegas a casa, está lá a tua filha, não lhe falta nada. Mas quantas vezes já chorei neste confinamento sozinho? E como eu acredito que muita gente tenha chorado. Eu trabalhei muitos anos em restauração. Não tenho problema nenhum em voltar, mas quem é que me aceita, se há falta de empregos?”, pergunta o DJ de 37 anos.

O único rendimento que regista deve-se ao programa de rádio que tem na Vodafone FM, “Rádio Balanço”, e um projeto com o clube Musicbox, através de fundos criados pela Câmara de Lisboa para apoiar produtoras nacionais de música independente.

Com uma dívida às Finanças, Wilson acabou por desistir de avançar com pedido de apoio.

“Desmotivei-me com a burocracia, com os valores que são ridículos, e não procurei benefícios. Como tenho a sorte de ter a casa da minha mãe para voltar foi isso que fiz”, disse.

Ao mesmo tempo, Wilson Vilares salienta que tem muitos amigos “a repensar as carreiras, a vender coleções gigantes de discos” e considera que isso “é preocupante”.

Um DJ do Porto, que optou por não se identificar, contou à Lusa que já vendia discos antes da pandemia e viu-se obrigado a continuar a vender, sendo o único rendimento que tem.

Sem estar coletado, vai sobrevivendo dessas vendas e das poupanças que tinha, para além de algum rendimento, ainda que muito inferior ao de anos anteriores, que conseguiu ter no verão passado.

“Mudar de atividade não vou mudar. Faço aquilo que gosto e não me vejo a fazer outra coisa”, afirma esse mesmo DJ, que se tem dedicado à produção de música própria.

Por não descontar para a Segurança Social, não teve direito a qualquer apoio, considerando que a pandemia foi também uma forma de mostrar a precariedade e informalidade presentes no setor.

“Quando isto terminar, vou coletar-me outra vez. Acho que é o mais seguro. Acho que era o que toda a gente devia fazer”, vinca, salientando que este é um setor sem grande segurança do ponto de vista laboral.

“Espero que a pandemia abra os olhos à malta [porque] temos de estar todos legais e a contribuir”, acrescenta.

No meio da pandemia, surgiu também o movimento PisoJusto que procura analisar o cenário laboral dos DJ em Portugal.

“É um setor ainda muito informal, em que muita coisa acontece por fora e não é estruturado. O que vai acontecer quando tudo isto voltar?”, afirmou à Lusa o movimento.

O PisoJusto está a divulgar um formulário em que aborda questões laborais, mas também sociais, como o género, etnia ou idade, para, no final, poder traçar um cenário do DJ em Portugal, que deverá ser divulgado no verão.

“Queremos mudanças. Queremos evidenciar como as coisas acontecem e exigir algumas mudanças. O foco não é voltar a como estávamos antes, mas podermos ir para um sítio melhor”, realça.

Ao longo destes meses, a própria relação com os discos tem mudado para alguns DJ – uns encontram na música uma salvação, outros veem nos discos uma recordação de um passado que já parece distante.

“Não tenho ‘pica’ para me sentar a escutar um disco. E depois onde vou usar esse disco? A maior parte dos meus discos são para ação. [..] O ‘turntable’ [gira-discos] lembra-me a rotina, aquele ritual de abrir a tampa, meter o disco e preparar algo para o fim de semana, com ‘pica’ para tocar coisas novas. Estive a olhar para os discos e a arrumálos, mas não tenho coragem para pôr a agulha”, desabafa Wilson Vilares.

Já Tiago André, por outro lado, salienta que têm sido os discos que o “têm salvado durante este ano”.

“Houve uma altura em que me fui muito abaixo, em setembro ou em outubro. Estava muito apático, quase em depressão, mas tinha de gravar um programa [na Rádio Universidade de Coimbra], e aquelas três horas entre escolher os discos, preparar e gravar o programa, só havia aquilo – a música. Não existia depressão, falta de dinheiro, problemas amorosos”, relembra.

Nestes escapes, Tiago já anda a magicar “um conceito de uma festa nova”, em que pretende explorar “música bem-disposta, dançável” do Caribe, América Latina e África.

“É um ‘set’ para quando isto acabar. Quero lançar esta festa de comunhão e boa disposição”, disse.

André Soares olha para esse exercício de imaginar um ‘set’ futuro quase como “masoquista”.

“Não sei se isso vai acontecer para mim. Quando isto voltar, posso já não ter motivação e seguir a vida noutro rumo. Se há um ano punha essa possibilidade? Não. Se agora ponho? sim”, conclui.

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