Ana Luísa Amaral, "uma paixão" pela poesia, pela palavra, pela língua

O seu percurso poético abre em “Terra de Ninguém”, primeiro poema do seu primeiro livro, “Minha Senhora de quê”, publicado em 1990, e tem o seu desfecho em “Mundos Depois”, cerca de três décadas mais tarde.

Entre um poema e o outro, afirmou-se “uma voz genuinamente original”, como disse o professor Arnaldo Saraiva, logo perante os primeiros testemunhos da jovem docente de Literatura da Universidade do Porto, uma voz que ganhou de imediato uma “rápida e espantosa internacionalização”, justificada pela importância da sua expressão, como destaca a investigadora Maria Irene Ramalho, no posfácio a “O Olhar Diagonal das Coisas”, volume de mais de 1.300 páginas, publicado este ano, com a obra poética da escritora.

No conjunto dessa obra, reconheceu o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, há um ano, “contributo significativo para o património cultural” deste universo, da Ibéria e da América Latina, pois é de todo o universo, das maiores às pequenas coisas, a matéria de interesse de Ana Luísa Amaral, escritora que morreu na noite de sexta-feira, no Porto, aos 66 anos.

“Somos feitos da matéria das estrelas — o próprio Shakespeare o diz”, afirmou no passado mês de outubro, em entrevista à agência Lusa, a propósito da publicação do seu último livro “Mundo”. “O cálcio das mãos, o corpo, é o mesmo cálcio que existe numa estrela, num corpo estrelar”, afirmou.

Ana Luísa Amaral nasceu em Lisboa, em abril de 1956, e vivia em Leça da Palmeira, Matosinhos, desde a infância. Estudou Literatura, fez um doutoramento na poesia de Emily Dickinson, que traduziu, especializou-se em Poéticas Comparadas, Estudos Feministas, Estudos Queer.

Professora aposentada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, era investigadora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, somando publicações académicas e promovendo edições como o “Dicionário de Crítica Feminista”, de que foi coautora, e mantendo viva a importância de obras como “Novas Cartas Portuguesas”, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, cuja edição mais recente anotou.

Recebeu os maiores prémios, nacionais e internacionais, do Prémio Vergílio Ferreira ao Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, do Correntes d’Escritas, ao Prémio Internazionale Fondazione Roma: Ritratti di Poesia.

“Acima de tudo, era uma pessoa boa”, dizem amigos da escritora à agência Lusa, que recordam a sua ligação de sempre às Letras e à Poesia, em particular, os primeiros poemas ainda escritos na pré-adolescência, o gosto pelos livros, pela investigação, pela leitura, pela língua, pelas palavras.

Soma perto de duas dezenas de livros de poemas, publicados entre 1990 e 2021, com títulos como “Epopeias”, “E Muitos os Caminhos”, “Às Vezes o Paraíso”, “A arte de ser tigre”, “A génese do amor”, “Entre dois rios e outras noites”, “Vozes”, “Escuro”, “What’s in a name”, “Ágora”.

Soma mais de uma dezena de livros de literatura infantojuvenil e ensaios sobre literatura e vida, alguns coligidos no volume “Arder a Palavra e Outros Incêndios”.

Escreveu teatro em “Próspero Morreu” (2011), que também era “poema em um ato”, escreveu ficção, em “Ara” (2013), mas, acima de tudo, expandiu o gosto pela palavra, pela língua.

“A primeiríssima exigência de um tradutor é ter uma imensa paixão pela sua língua”, disse Ana Luísa Amaral à Lusa, em outubro do ano passado, a escritora que também traduziu Shakespeare, Emily Dickinson, Louise Glück, Margaret Atwood, Patricia Highsmith, Arnold Wesker, John Updike. E gostava de ouvir Bob Dylan.

“Quando estamos muito apaixonados por alguém, queremos conhecer muito bem a pessoa, saber tudo sobre essa pessoa. O que fizeste quando eras criança, onde é que andaste, tudo, tudo, tudo. Estando apaixonado pela nossa língua, queremos saber tudo sobre ela. Ao querermos saber tudo, conhecemo-la muito bem. É ouvindo-a e, também, lendo-a. Essa é a primeira exigência de um tradutor”, assegurou.

Essa paixão marca a sua escrita, “uma ‘voz feminista’ empenhada em reinventar a tradição”, escreve Maria Irene Ramalho. “Enquanto mulher-poeta, Ana Luísa Amaral ousa fazer-se parte dessa tradição, subtilmente lhe denunciando as invisibilidades e habilmente jogando com as sua formas, temas, mitos, metros e ritmos, como só é capaz de fazer quem muito bem os domina”, prossegue a investigadora e professora da Universidade de Coimbra, no posfácio a “O Olhar Diagonal das Coisas”.

“Ana Luísa Amaral mostra real prazer em escrever ao longo de toda a sua obra”, desde “Coisas de Partir” (1993), até ao derradeiro livro de originais “Mundo” (2021), desafiando modelos, formas populares e clássicas, da redondilha ao soneto, que dizia “querer-se molhado, como o pão de ló”, especifica Maria Irene Ramalho.

“Ao longo de toda esta poesia há sempre uma mulher-poeta decidida a conquistar espaços e silêncios. Dentro da tradição, mas também ao revés da tradição, na domesticidade da casa, na cozinha, em receitas com cebolas e alhos [transformadas em poemas]. O cânone lírico ocidental teve de adaptar-se aos refogados de Ana Luísa Amaral. E tudo isto, sem descartar o amor, que é o centro mesmo do lirismo”, defende a investigadora.

“A poesia não tem de ter mensagem nenhuma”, disse Ana Luís Amaral à Lusa, em outubro do ano passado, para explicar que, na sua poesia não reconhecia necessariamente uma voz, já que a sabia composta de “vozes diferentes”, mas sim uma “tonalidade”, que “tem a ver, talvez, até com intensidade”, de novo e sempre “a paixão pela língua e pelo que os outros escreveram”, porque “todo o escritor é um leitor. Sempre”.

Recusava “a ideia um bocadinho neorrealista, na chamada poesia comprometida, de que a poesia tem de ter uma mensagem, de passar uma mensagem da desigualdade, da luta de classes”, e contrapunha: “Nós, enquanto seres humanos e cidadãos e cidadãs, sendo comprometidos com o mundo, é natural que essas preocupações de alguma maneira transpirem para aquilo que nós fazemos, que nós escrevemos”.

Assim fez. Está nos gestos diários da cozinha, no quotidiano que a inspira, na história que perspetiva, no modo como cada verso seu é também “um verdadeiro manual de como sensualmente se constrói um poema lírico para a nossa contemporaneidade — o velho e o novo, o privado e o público, o clássico e o doméstico, o sublime e o banal — recíproca e maciamente apurados em ‘refogado (…) doce e manso'”, recorda Maria Irene Ramalho.

“No ‘Mundo’ cabe tudo”, disse Ana Luísa Amaral à Lusa, quando da edição do seu derradeiro livro. “É uma tentativa, nunca resolvida — porque, se não, deixaria de escrever –, das minhas interrogações”. Nas suas páginas, “tanto pode caber uma formiga, quanto uma centopeia, a crueldade do mundo, as desigualdades”.

Em “As cores da Servidão” trata “da segregação, discriminação, colonização, quer relativamente às mulheres, quer relativamente aos pobres, quer relativamente ao outro”, afirmou, sem esquecer “a questão de género, as mulheres no doméstico e os homens na guerra, depois a questão das sexualidades (…), no fundo, sexualidades não normativas”.

“Estou a pensar em [William] Blake, quando diz ‘to see a world in a grain of sand’ [‘ver o mundo num grão de areia’], porque, se pusermos um grão de areia num microscópio, tem um mundo lá dentro. (…) É o quotidiano, as coisas pequeníssimas do quotidiano, mas também é o buraco negro”, disse Ana Luísa Amaral sobre a sua própria poesia.

No primeiro poema, “Terra de Ninguém”, requer “espaço ou uma receita qualquer”, “um espaço a sério”, porque não lhe chega “o conquistado à custa de silêncios”.

No derradeiro poema, do último livro, “Mundos Depois”, encontra-se perante a lápide de uma sepultura, na Nova Inglaterra — a Nova Inglaterra de Emily Dickinson e a sepultura de um casal de há mais de 200 anos –, onde um verso de Thomas Gray os une (“até que o tempo remova, com a vida, toda a dor”). “O que será, será”, “whatever will be, will be”, escreve Ana Luísa Amaral, atribuindo o sussurro à mulher, deitada “em preguiça feliz, pelo calor de um corpo amado.”

Quando lhe foi atribuído o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, em maio do ano passado, Ana Luísa Amaral “estava a passear a [sua] cadela, Emily Dickinson, no jardim quando [lhe] telefonaram de Espanha com a notícia”, como contou à Lusa.

Foi “uma felicidade sem nome”, um reconhecimento de um trabalho que é “prazer, angústia e necessidade”.

Do seu último livro, disse à Lusa ser “uma espécie de glorificação, sim, da vida”. “Mesmo no desconcerto que é o mundo, mesmo no horror que existe no mundo, mesmo na crueldade que existe no mundo, estar vivo é, como dizia Dickinson, Poder — com maiúscula”.

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