As várias facetas de George Orwell numa nova coletânea de ensaios

 

O Orwell ensaísta que o público português conhece é essencialmente o Orwell político, e os textos que têm sido privilegiados são os que refletem sobre as questões ideológicas e históricas da sua época – e que ajudaram a construir o cenário que serve de pano de fundo aos romances ‘Mil Novecentos e Oitenta e Quatro’ e ‘A Quinta dos Animais’ -, uma abordagem diferente da apresentada na coletânea ‘George Orwell – Ensaios’, publicado pelas Edições 70, chancela da Almedina.

Este contexto é explicado no prefácio do livro, assinado por Jacinta Matos, biógrafa do escritor, que traduziu e organizou esta coletânea de 20 ensaios, por secções, cada uma delas com uma introdução, contextualizando a temática do grupo de textos aí reunidos.

Esta organização pretende “tornar mais visíveis” os temas a que o autor deu atenção e os prismas sob os quais olhou para o mundo à sua volta, mas sem criar fronteiras rígidas em redor de cada uma delas.

Facilmente se encontram “ecos, justaposições, variações, coincidências e até contradições entre o que se discute num ensaio sobre os postais de praia e noutro sobre o nacionalismo, ou num acerca das roseiras compradas num armazém popular e noutro sobre a produção da bomba atómica”, escreve Jacinta Matos.

“Na boa tradição do ensaio, Orwell passeia pelo mundo, parando aqui e ali, observando o detalhe, meditando sobre ele, ‘ensaiando’ explicações possíveis para isto ou para aquilo, pensando alto, e assim envolvendo os leitores no seu processo de descoberta do real”, acrescenta.

No entanto, a responsável pela organização da obra salienta que não se pretende “despolitizar” Orwell, mas antes “reforçar precisamente uma faceta que o autor indicou sempre como primordial em tudo o que escreveu”.

Isto porque, para George Orwell, o “político” extravasa o partidário ou o estritamente ideológico, sendo “o impulso central da nossa relação com o mundo nas suas múltiplas dimensões, cruzando-se, assim, com a arte, a cultura, a identidade e até a vivência do quotidiano”.

O próprio explicou por que escrevia, confessando uma tentativa de “empurrar o mundo numa determinada direção, de modificar as ideias dos outros sobre o tipo de sociedade pela qual devem lutar”.

Outra particularidade dos ensaios ‘orwellianos‘ prende-se com a diversidade de públicos a que chegou desde que começou a escrever: desde a elite cultural até públicos mais diversificados e politicamente motivados, passando por um público novo de classe média, que reclamava ser ouvido, respeitado e levado a sério pelo poder.

Para tal contribuíram as várias revistas e jornais em que publicou, com diferentes pendores ideológicos e diversos públicos alvo, que passaram por publicações de grande circulação, de inspiração socialista, de elite ou de pendor politico-ideológico.

Também jogou a seu favor o estilo utilizado, o chamado ‘plain style’: “simples, direto, sincero, coloquial, informal e desassombrado, mas nem por isso menos exigente ou correto, evitando tanto os arrebiques pretensiosos como a vulgaridade dos coloquialismos e os clichés da moda”.

Jacinta Matos aponta a honestidade, a sinceridade com que se expõe publicamente, o risco de pensar alto, tanto em relação ao transitório quanto às questões mais profundas, como qualidades do autor, que até os seus inimigos declarados “têm forçosamente de lhe reconhecer”.

“Junte-se-lhes a perspicácia da observação, o humor, a ideia idiossincrática mas reveladora, a informalidade do estilo (que ainda assim evita demagogias e populismos) e a versatilidade dos temas, e teremos a forma do ensaio no seu melhor”, acrescenta, confessando que a qualidade que mais lhe “toca”, “é a capacidade de extrapolar a partir do pormenor para o mais geral, de conseguir que o detalhe aparentemente trivial e insignificante passe a ter significados insuspeitados“.

A primeira secção do livro apresenta “Orwell e a política”, e reúne cinco ensaios: “A literatura e a esquerda”, “Nós e a bomba atómica”, “O antissemitismo na Grã Bretanha”, “O escritor e o Leviatã“, e “Notas sobre o nacionalismo”.

“A literatura e a esquerda” e “O escritor e o Leviatãrefletem sobre o dilema entre a autonomia artística e o envolvimento político, a liberdade de criação e o comportamento ideológico, enquanto “Nós e a bomba atómica” fala sobre as alterações geopolíticas do poderio atómico, e os outros dois oferecem uma reflexão sobre o nacionalismo e o antissemitismo.

A segunda secção, dedicada ao imperialismo, apresenta os ensaios “Um enforcamento” e “Matar um elefante”, que distam cinco anos entre si, o primeiro ainda próximo da sua experiência como jovem polícia imperial, o segundo com uma visão mais lata, fruto do seu amadurecimento político-ideológico e literário.

A crítica literária é a temática central da terceira parte do livro, e tem ensaios dedicados a Charles Dickens, Rudyard Kipling, Arthur Koestler, que tomam o nome dos autores, e ainda uma “Carta a Brenda Salkeld“.

Segue-se uma visão de Orwell sobre a cultura de massa, que agrega os ensaios “A arte de Donald McGill“, “Raffles e Miss Blandish”, “À vinda de Bangor” e “O declínio dos assassínios ingleses”.

A visão que Orwell tinha sobre a natureza, reveladora de uma “atitude de espanto e deslumbramento”, está presente nos ensaios “As I please”, “Algumas reflexões sobre o sapo-comum” e “Estâncias de lazer”, que compõem a quinta parte do livro.

A terminar, os ensaios “A lua sob as águas” e “O leão e o unicórnio” refletem a posição de Orwell face à identidade inglesa, descrita como “uma família em que os membros errados detêm o controle”.

O livro inclui ainda uma nota autobiográfica, escrita por George Orwell aos 38 anos, na qual se apresenta como um homem de esquerda, consciente de que um escritor só pode preservar a sua integridade se mantiver a independência face a rótulos partidários.

Amante confesso de Shakespeare, Swift, Fielding, Dickens, Charles Riade, Samuel Butler, Zola, Flaubert, James Joyce, T.S. Eliot e D.H. Lawrence, Orwell diz que foi Somerset Maugham o escritor que mais o influenciou.

George Orwell é o pseudónimo de Eric Arthur Blair, escritor, jornalista e ensaísta político inglês, nascido em 1903, na Índia Britânica, que se tornou célebre sobretudo pelas suas obras de ficção política “A Quinta dos Animais” (1945) e “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro” (1949).

 

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