"Cesária Évora nunca foi o expoente máximo da música de Cabo Verde"

Afastado dos holofotes há mais de 30 anos, quando se recusou a pactuar com o que considera “uma farsa” em torno do sucesso de Cesária, cuja carreira desenhou, como fez com outros artistas, Paulino Vieira afirma, convicto, que “Cesária Évora nunca foi o expoente máximo da música de Cabo Verde”.

Em entrevista à agência Lusa em Lisboa, onde reside, aquele que é conhecido como uma “lenda viva”, e admirado por cantores de várias nacionalidades, Paulino Vieira contou que foi ele quem encaminhou ao sucesso a “diva” dos pés descalços, acompanhado de três músicos: Armando Tito, Toy Vieira e Vaiss.

Guarda boas recordações da convivência com o grupo que criou, nomeadamente da boa disposição e harmonia, fundamentais para quem passou tanto tempo junto.

“Quando se rouba um projeto tenta-se esconder o seu pensador. Neste caso fui eu o pensador da carreira da Cesária. Cabo Verde não tinha nada a ver com isso, porque Cabo Verde nunca ligou à sua cultura”, disse.

Paulino Vieira acedeu a tratar da carreira de Cesária, esperando que, mais tarde, o empresário José da Silva o ajudasse a continuar o seu movimento, que consistia em abrir as fronteiras aos músicos de Cabo Verde, com benefícios para o desenvolvimento do próprio país.

“Eu usava a minha carreira para lançar gente. Todos as pessoas, os africanos todos, vinham para Lisboa e vinham para gravar comigo. Desde os altos músicos até os inocentes. Aos inocentes prestávamos mais atenção, porque aos grandes músicos todos abriam a porta”.

E acrescentou: “Estávamos em serviço, em prol do país, porque levantando a Cesária Évora, da mesma forma como já se tinham levantado outros artistas, estávamos a engrandecer o país, formando produtos musicais que podiam ser vendidos no estrangeiro e o país passaria a viver da sua própria cultura, tendo vários artistas espalhados pelo mundo”.

A explosão do sucesso de Cesária nos palcos de França e mais tarde em vários outros palcos mundiais – onde o multi-instrumentista se destacou – trouxe a desilusão ao artista.

“Ao começar a ganhar terreno, implantam uma máfia para vir enganar o mundo inteiro com uma rainha fantasma, mentindo ao povo acerca do próprio folclore. O nosso folclore foi deturpado. Tínhamos as mornas, as coladeiras, os batuques, os funanás, as bandeironas. A música de Cabo Verde ficou reduzida à morna, menosprezando os outros ritmos que nunca foram mencionados nem nunca mais foram tratados”, contou.

E vaticinou: “A música de Cabo Verde está condenada ao extermínio”.

“Pararam todos os nossos artistas de Cabo Verde com contratos de exclusividade. A Lusáfrica [discográfica fundada por José da Silva] carimbou essas pessoas, não lhes deu trabalho e também não lhes deixou trabalhar para mais ninguém. Por isso a Cesária foi vista como produto único, só ela funcionava. Estava e ainda está nos planos dessa gente mostrar que só a Cesária funcionou. Aquilo não é funcionamento, é mentira. Se é mentira, eu não posso colaborar nisso”, adiantou.

E sublinhou que, mesmo os outros artistas que foram aparecendo, foram ganhando fama por terem cantado ou tocado com Cesária, não pelo seu mérito.

“Não se conhece nenhum artista com nome, depois da Cesária. Só os pequeninos que eles não deixam crescer e que têm muito mais talento que a Cesária”.

Em 1996, Paulino Vieira saiu de cena, mas apenas dos palcos grandes, pois continuou a criar e inclusive a fazer espetáculos “às escondidas”, pois não queria que as suas produções fossem “aproveitadas” para fazer promoção.

“Eu não quis isso. Não queria ser um macaquinho nas mãos dessa gente”, referiu, acrescentando que a decisão de se afastar de certas pessoas teve custos, denunciando perseguições e até uma tentativa de o fazer passar por louco.

E mandou retirar todas as referências ao seu nome na promoção de Cabo Verde, inclusive do Centro Cultural Paulino Vieira, em São Nicolau.

Paulino continua a ser um pensador, optando muitas vezes para se isolar de um mundo que o entristece.

“Quando olho para o mundo, esse mundo que nós vemos, eu fico um bocado triste. Quando estou isolado estou plenamente no alto e depois, quando uma pessoa desce para baixo, vê esse pessoal se matando e as pessoas morrendo. Eu não vim ao mundo para ver isso”.

Longe da ribalta, mas não da produção, diz que tem um stock de 30 anos de composições que o mundo não conhece. Músicas do mundo e não de um só país e tão pouco apenas de Cabo Verde, pois, como gosta de sublinhar, Paulino era dos cabo-verdianos, mas também dos angolanos e dos moçambicanos e de todos que o procuraram para partilhar um pouco da sua genialidade.

Recentemente, deu um espetáculo no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, em que mostrou a versatilidade que o caracteriza, num show que apresentou como “um simples ensaio”, dedicado aos trabalhadores, àqueles que, ainda que na sombra, são os que fazem a máquina funcionar.

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