‘Eu, Marat’. Leia o posfácio do livro do ex-comandante do Grupo Wagner

Marat Gabidullin entrou para o Grupo Wagner em 2015, e rapidamente atingiu a patente de comandante. Lutou em vários cenários de guerra, nomeadamente na Síria, contra o ISIS, e no Donbass.

A publicação do primeiro testemunho não anónimo do interior do Grupo Wagner esteve quase para não ser publicado. Um dia depois de ter mencionado o livro numa entrevista, o antigo comandante da milícia, recebeu ameaças suficientes para o forçar a cancelar o projeto.

Gabidullin sente orgulho de ter combatido na Síria como mercenário do Grupo Wagner. No entanto, sente-se desconfortável por admitir que serviu um exército sombra ilegal, agora no centro das atenções.

‘Eu, Marat’ nasce das contradições que assombram o seu autor.

“Uma obra importante para compreender alguns dos aspectos mais obscuros da política de Vladimir Putin”, escreve o jornalista e comentador José Milhazes, no prefácio, sobre um livro que “segue uma tradição da literatura de denúncia, muito comum entre os dissidentes soviéticos que conseguiam escapar para o estrangeiro, mas com uma particularidade importante: trata-se da primeira obra escrita por um mercenário russo na atualidade, combatente de uma empresa militar privada que oficialmente não existe, mas que atua em várias regiões do planeta.”

© Leya

A Casa das Letras edita esta terça-feira, 30 de maio, ‘Eu, Marat, Ex-Comandante do Grupo Wagner’, de Marat Gabidullin, que conta como é estar no coração do exército secreto de Vladimir Putin. O posfácio pode ser lido no Notícias ao Minuto, em exclusivo. 

Posfácio

Paris, abril de 2022

“Foi apenas recentemente, em 2021, que tomei plena consciência das razões que me levaram a escrever um livro sobre mercenários russos. O primeiro impulso veio quando comecei a ler novamente, após um longo período de estagnação intelectual. Devorei os Contos de Sebastopol de Leo Tolstoi, e as minhas mãos alcançaram o teclado por sua própria iniciativa. Fui atormentado por uma necessidade irreprimível de explicar aos meus compatriotas uma ideia muito simples, mas que a nossa moralidade pública condena, que considera mesmo um sacrilégio, sendo mesmo incompatível com a ideia de desenvolvimento histórico peculiar da Rússia: somos como todos os outros. E a nossa suposta identidade singular, espiritual e romântica é apenas um mito, propagado por aqueles que lucram com isso.

Este livro não é tanto um relato das aventuras bélicas de um mercenário e dos seus companheiros, mas sim a visão sobre o modo como a Rússia utiliza mercenários. Dizem-nos que os soldados da fortuna são um fenómeno ocidental, e que o mercenarismo é um produto da hidra capitalista, mas nós também os utilizamos para promover os interesses do nosso país no estrangeiro. Os nossos políticos mantêm um silêncio envergonhado sobre a existência de empresas militares privadas, rejeitando todas as alusões à utilização de tais formações não estatais. Pela sua parte, os propagandistas estão a doutrinar intensivamente os russos com a ideia de uma política externa exclusiva à Rússia, e evitando qualquer resposta direta a perguntas sobre o uso de mercenários.

Quem beneficia com isto? Acima de tudo, aqueles que vivem à custa do povo, procurando convencer as mesmas pessoas da sua utilidade. Os generais na Síria, por exemplo, exploraram com sucesso um projeto chamado ‘Eles não estão lá’, criando a ilusão de vitórias com poucas perdas no seio do exército. Mas o número real de cidadãos russos que morreram na guerra contra o Estado Islâmico não corresponde aos números oficiais. O número de mercenários russos que morreram na Síria é maior do que o número de soldados das forças armadas que lá morreram. No entanto, o próprio envolvimento das SMP é ocultado aos russos, a fim de manter o mito de uma guerra sem derramamento de sangue. O pessoal militar russo de todas as patentes presente na Síria desfruta do brilho da glória e deixa-se adular pelos ignorantes que arriscaram as suas vidas para derrotar os jihadistas.

Os líderes políticos também colhem dividendos do que eles chamam, alto e em bom som, de ‘fenómeno incompatível com os nossos valores altamente morais’. O resgate do regime de Bashar al-Assad permitiu que a Rússia se posicionasse como protetor e salvador de todos os tipos de criminosos neste mundo. O continente africano continua por desbravar para a diplomacia russa e políticos astuciosos. O poder ali está nas mãos de líderes sem escrúpulos que souberam apreciar a ajuda fornecida por Moscovo a Damasco, e têm-se mostrado dispostos a permitir à Rússia o acesso à riqueza mineral nas suas regiões, ricas em ouro, diamantes e petróleo.

O uso de mercenários pela Rússia é um facto comprovado e irrefutável. Este livro conta simplesmente a história de um deles, um homem que participou nos vários eventos na Síria. Acrescentei um capítulo sobre a minha primeira missão a Louhansk para comparação, por uma questão de objetividade, e para evitar a armadilha da imagem heroica do mercenário. Nós não somos heróis, simplesmente fazemos o nosso trabalho, pelo qual somos pagos. A menção de Louhansk permite-nos perceber que o mercenário não está apenas a trabalhar em nome do progresso e do humanismo (combater o EI), mas também para desempenhar tarefas triviais e bastante duvidosas.

Cada um escolhe a sua espada e a sua ideia. Eu, por exemplo, decidi um dia que, se voltasse ao combate, seria apenas para travar a guerra. Não estou sozinho a pensar assim, mas somos uma minoria, os outros estão prontos para servir tanto Deus como o Bezerro de Ouro. Afinal de contas, são mercenários.

A 24 de fevereiro, o Presidente da Federação Russa lançou uma ‘operação especial’ contra o que ele chama de ‘regime nazi na Ucrânia’. Mas, em poucos dias, a ‘operação especial’ acabou por ser uma guerra em grande escala: as cidades são destruídas, civis são mortos. Numa guerra, as discussões sobre o envolvimento desta ou daquela parte na morte de civis não fazem sentido. É sempre o atacante quem está errado. Aquele que começou a guerra é o único a assumir a responsabilidade pela retaliação. Uma bomba ou um míssil que cai sobre um edifício residencial, independentemente da sua origem, apenas foi disparado porque está em curso uma guerra.

A julgar pela quantidade de armas avançadas e munições de alta precisão e de alta potência, a Rússia começou a preparar-se para a guerra há muito tempo, afundando milhares de milhões de dólares neste projeto, enquanto os idosos têm de viver de pensões e cuidados médicos humilhantemente baixos e os cuidados médicos para crianças financiados por maratonas televisivas!

E o Exército? Apesar da sua total dominação do espaço aéreo e a superioridade do seu armamento moderno, sofre enormes perdas. O Ministério da Defesa não mente quando anuncia o número de mortos, simplesmente não conta a história toda. Um soldado cujo corpo foi encontrado e identificado é considerado morto. Os restantes não identificados ou abandonados em território inimigo são registados como ‘destino desconhecido’. A Guarda Nacional Rosgvardia (1) não faz parte do Exército e o Ministério da Defesa não é obrigado a prestar contas das baixas nas suas fileiras; o mesmo se aplica às formações armadas da República Popular de Donetsk e Louhansk. Quando foi necessário lutar na Síria, o Exército enviava mercenários para fazer o seu trabalho no terreno. Hoje em dia, está a colher os benefícios dessa vitória artificial. No passado, o Exército russo lutava sem grande convicção contra o Estado Islâmico, a praga ideológica do século XXI. Neste momento, sacrifica os seus combatentes com notável zelo numa guerra contra um povo fraternal. Os mercenários russos estão também inscritos numa coluna separada, classificada como confidencial, na lista de vítimas. E são muito numerosos atualmente na Ucrânia, em todas as direções da chamada operação especial. As formações das repúblicas de Donbass, reconhecidas apenas pela Rússia, e que durante oito anos seguiram só uma estratégia defensiva, seriam incapazes de realizar operações ofensivas sem o apoio de outra força, os mercenários. Até recentemente, pelo menos dois destacamentos de mercenários estavam presentes em torno de Kiev, afetados especificamente para esta operação. Além disso, três destacamentos do Wagner estão envolvidos nos combates em Mariupol e Kharkiv. Os mercenários são pagos em dólares. A nova tendência entre as forças invasoras é trocar o patriotismo por dólares. Não há ideologia, apenas o desejo de ganhar dinheiro.

E a Rússia? Como de costume, aprova a linha de ação do partido e do governo. Os cérebros dos meus concidadãos, transformados em geleia pelo trabalho de propaganda, aceitam a ideia de ‘desnazificação’ e ‘desmilitarização’ da Ucrânia. Altamente pagos, tratados, vestidos com marcas ocidentais, os proprietários de casas na Europa e nos Estados Unidos corromperam tanto a mente dos russos que estes últimos estão prontos a ficar orgulhosos com semelhante ataque, esquecendo o seu miserável nível de vida.

Todos os anos, a 9 de maio, os meus concidadãos seguram retratos dos seus parentes que caíram na Grande Guerra Patriótica (2), mas não se atrevem a enfrentar o ‘ameaçador’ checheno (3). A apropriação da vitória dos antepassados já não é suficiente para lhes satisfazer as mentes doentes e o seu desejo de grandeza. O culpado de todos os males desta vez é o regime ‘nazi’ na Ucrânia e os seus patronos ocidentais e americanos, que sempre foram hostis para connosco. O povo russo triunfa e pinta as letras ‘Z’ nas paredes e carros. E a vitória nesta guerra, que não deve ser pronunciada desta forma, já foi alcançada de forma preemptiva pela legislação que sanciona qualquer forma de dissidência ou narrativa alternativa à versão oficial da informação disponível para a maioria dos russos. Televisão, rádio e jornais estão sob controlo, e nem todos sabem como contornar os bloqueios na Internet, nem sentem a necessidade de o fazer. Assim, todas as condições estão reunidas para transformar qualquer derrota numa vitória.

As dificuldades económicas ligadas ao isolamento internacional não assustam a maioria dos russos, que nunca viveram em abundância ou que nem tiveram tempo para se habituarem a ela. A amizade com os países em desenvolvimento, o que é muito dispendioso para o nosso orçamento, e cooperação em pé de desigualdade com a China parecem soluções aceitáveis para resistir ao diktat do Ocidente. Por diktat entenda-se a capacidade de negociar e impor padrões elevados a si próprio a fim de permanecer competitivo. Com a China ou a RCA, é mais simples: no primeiro caso, deitamo-nos, é Pequim quem dita a lei. No segundo, os trunfos estão na nossa mão: os líderes estão inteiramente dependentes de mercenários.

É difícil prever o que irá acontecer ao meu país, e a mim próprio. Será que temo pela minha vida e liberdade? Não sou uma figura tão importante como Alexei Navalny (5) ou Boris Nemtsov (6), naquele tempo. Não peço a ninguém que suba para as barricadas e não lidero nenhum movimento de oposição. Apenas me expresso abertamente. Com conhecimento de causa. Serei acusado de ser um inimigo do povo? Esse é o termo agora utilizado para designar qualquer pessoa que se atreva a dizer em voz alta o que uns preferem manter em silêncio e outros não querem reconhecer. Bem, eu estou preparado para viver com este estigma, que só faz sentido para aqueles que colocam rótulos. Aquele que vive, verá”.

Marat Gabidullin

(1) Força militar interna do governo russo, criado a 5 de abril de 2016. Foi confiada ao antigo guarda-costas pessoal de Vladimir Putin, Viktor Zolotov.

(2) É assim que é chamada, na Rússia, a Segunda Guerra Mundial, cuja vitória é celebrada a 9 de maio.

(3) Ramzan Kadyrov, autoritário presidente da república da Chechénia, no Cáucaso do Norte russo.

(4) Principal opositor de Vladimir Putin e carrasco incansável do seu regime, preso há mais de um ano.

(5) Célebre opositor assassinado em 2015 sob as paredes do Kremlin.

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