Exposição de Samson Kambalu cruza humor e crítica na Culturgest

´Frature Empire’, com curadoria de Bruno Marchand, é a apresentação mais completa da obra de Samson Kambalu até à data, e vai estar patente ao público entre os dias 02 de outubro e 06 de fevereiro de 2022.

Naquela que é a sua primeira programação para a Culturgest enquanto programador de artes visuais, Bruno Marchand escolheu o trabalho de Samson Kambalu, nascido no Maláui, onde se formou em artes visuais e etnomusicologia, residente em Oxford, no Reino Unido, onde é o único ‘fellow’ africano.

“Esperamos que [a mostra] nos traga alguma ideia de africanidade. É muito curioso a forma como ele lida com esse desafio: usa sobretudo a via do humor e a subtil reflexão crítica, e consegue lidar com um problema complexo, de forma eficaz, tirando de cima da conversa todo o moralismo”, explicou o curador, durante uma visita para a imprensa.

O interesse pelo trabalho de Samson Kambalu nasceu durante a Bienal de Veneza de 2015, quando Bruno Marchand se deparou com um conjunto de pequenos filmes, semelhantes aos do cinema mudo, que o encantaram.

Desde então, acompanhou sempre o seu trabalho e alimentou a ideia de um dia organizar uma exposição com a obra do artista, razão por que, três anos depois, decidiu encomendar o catálogo da Bienal.

A oportunidade para a exposição viria a surgir este ano, “num momento importante”, quando Samson Kambalu venceu a última edição do Quarto Plinto (Fourth Plynth), um prestigiado concurso de escultura pública em Inglaterra e um dos prémios de arte pública mais famosos do mundo.

A maqueta desse concurso é a peça que abre esta exposição, cuja entrada está ladeada por uma estrutura iluminada, em madeira, que imita os antigos suportes para os títulos de filmes à entrada dos cinemas.

Esta é apenas uma das várias estruturas do género que acompanham a exposição, cada uma com uma frase diferente, como o título de um filme, que cria no visitante uma imagem mental a remeter para o cinema.

Na primeira sala, encontra-se, em ponto pequeno, a escultura vencedora do Quarto Plinto, que reproduz uma fotografia tirada em 1914, que mostra John Chilembwe, um pan-africanista e um dos primeiros ativistas anticoloniais, fundador de uma Igreja no Maláui, lado a lado com o missionário inglês John Chorley.

Ambos estão de chapéu, o que, na altura, era proibido: as regras coloniais ditavam que aos africanos não era permitido usarem chapéus na presença de brancos, o que fez desta imagem e da sua disseminação um ato subversivo.

Chilembwe foi assassinado um ano mais tarde e a sua igreja destruída. As imagens da destruição da igreja estão dispostas, em fotografias, pela parede da sala, numa simbologia da destruição do poder.

Na escultura “Antelope — Ghost maquete for the Fourth Plinth”, as duas figuras aparecem com escalas diferentes, sendo o africano que luta pela independência maior e, o branco colonizador, mais pequeno.

Segundo Bruno Marchand, na praça onde as figuras em tamanho real estão expostas, olhando de um determinado ângulo, as duas figuras têm o mesmo tamanho.

A segunda sala apresenta um conjunto de filmes Nyau (palavra das tribos Chewa para “excesso”), projetados nas paredes, que são peças cinematográficas com menos de um minuto, a que se pode chamar “cinema de atração”, ou seja, “pode causar espanto, a narrativa é secundária”, explicou Bruno Marchand. Na parede da sala será colocado um texto que enumera as regras para o cinema Nyau.

Na terceira sala é dominante a ideia da máscara, um artefacto importante para os Nyau, irmandade secreta dos povos do Maláui, cujo ritual mais importante é a Grande Dança, praticada numa arena com recurso a máscaras zoo ou antropomórficas, e que representa “o reverso do capitalismo e a ideia de caos, ou suspensão da moralidade”.

No centro desta sala encontra-se um grande elefante — segunda figura na hierarquia da irmandade -, cujo tecido de revestimento provém das batinas usadas por Samson Kambalu, quando tem ações formais em Londres.

O elefante está de frente para o Quarto Plinto, através das portas comunicantes entre salas, porque há uma ligação entre ambas as peças, como explica Bruno Marchand: a figura do elefante, na Grande Dança, é uma estrutura com dois homens no interior, um abaixado e outro levantado, que têm de se coordenar, para funcionar.

As duas salas que se seguem estão “ligadas uma à outra, porque contam a história de um episódio que aconteceu a Samson”.

Em 2015, o artista, enquanto bolseiro da Universidade de Yale, encontrou na biblioteca Beinecke um dos maiores arquivos de documentos e outra efémera sobre o situacionismo – movimento cultural e político, cujas ações tiveram maior expressão na Europa dos anos 1960 -, reunido ao longo de décadas por Gianfranco Sanguinetti, um dos últimos situacionistas ainda vivos.

O arquivo tinha sido vendido no ano anterior, numa decisão, considerada por muitos, contrária aos princípios e valores do movimento, que sempre defendeu o livre acesso à cultura.

Numa tentativa de contrariar esta privatização, Samson Kambalu fotografou todo o seu conteúdo e exibiu-o na Bienal de Veneza de 2015, tendo ambos sido processados por Sanguinetti, que perdeu o caso na justiça.

Todo esse arquivo encontra-se agora exposto numa das salas da Culturgest, enquanto na outra sala ao lado se exibe uma longa-metragem, que reproduz todo o processo do julgamento, com o próprio Samson, com advogados e as alegações reais, que fazem levantar questões como “o que é o direito de autor, a ideia de propriedade, de autoria ou de cópia”, destacou o curador.

O filme chama-se “A game of war”, título inspirado num jogo inventado pelo filósofo francês Guy Debord, autor de “A sociedade do espectáculo”, um dos mais famosos situacionistas, que se encontra vastamente documentado neste arquivo.

Segue-se uma sala de cinema Nyau, onde vários filmes são projetados, todos eles com alguma ligação com outras peças ou então com referências filosóficas, como “A Alegoria da Caverna”, de Platão, ou a frase “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio”, de Heraclito.

Os filósofos assumem grande importância na vida e trabalho de Samson Kambalu, que nasceu no seio de uma família muito pobre, cujo maior tesouro era um armário cheio de livros a que chamavam “o díptico”.

Dessa seleção heterogénea de livros, foram os de filosofia, em particular de Nietzsche, que mais interessaram Samson Kambalu, com a sua apetência para o pensamento abstrato.

A penúltima sala é composta por figuras cartonadas de africanos envergando fardas semelhantes às usadas pelos oficiais do exército britânico, numa alusão a uma dança criada pelos malauianos — “Beni” -, em que estes vestem aquelas roupas e parodiam o protocolo dos ocidentais.

Nas paredes, há várias bandeiras que resultam de um trabalho do artista, de fundir bandeiras de territórios e desmontá-las.

A terminar a exposição, um conjunto de postais com várias bandeiras impressas, estas menos territoriais e mais abstratas, num minimalismo pictórico que o artista chama de “abstração geométrica”, segundo o curador.

Em cada sala, haverá textos de contextualização das peças – explica o curador Bruno Marchand -, porque “a arte conceptual precisa de contexto para fazer o efeito que é suposto fazer”.

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