"Faço isto com o meu amor e não com o objetivo de procurar um Óscar"

A carreira de Luís Sequeira como ‘costume designer’ em produções cinematográficas e televisivas prossegue a todo o gás. Em 2018, este lusodescendente nascido no Canadá recebeu uma nomeação para os Óscares devido ao seu trabalho em ‘The Shape of Water’, um filme de Guillermo del Toro. Seguiram-se trabalhos noutras grandes produções.

Mais recentemente, Luís Sequeira voltou a colaborar com del Toro, desta feita, no filme noir ‘Nightmare Alley’, que conta com um elenco de luxo (Bradley Cooper, Cate Blanchett, Rooney Mara, Willem Dafoe e Richard Jenkins, entre outros) e que já estreou a nível mundial mas que só vai chegar às salas de cinema portuguesas no dia 27 de janeiro do próximo ano.

O Notícias ao Minuto esteve à conversa com Luís Sequeira sobre o seu trabalho e os desafios que teve em ‘Nightmare Alley’, que tem merecido diversos elogios, mas também sobre as colaborações que tem desenvolvido com Guillermo del Toro ao longo dos anos.

O ‘costume designer’ também falou sobre o impacto da pandemia na indústria, que tem sabido responder a este novo normal reforçando a segurança de todas as pessoas envolvidas nos filmes. “Penso que a indústria do cinema tem estado muito em cima do problema, com muito sucesso”, frisou.

Quão desafiante foi trabalhar em ‘Nightmare Alley’? Trabalhou em décadas diferentes – os anos 30 e 40 do século XX – e teve de conceber roupa para duas realidades completamente distintas, uma realidade feirante, circense, e outra citadina e de alta sociedade. 

Sim, foi um projeto muito interessante porque tinha muita roupa para preparar e nós tínhamos de dividir mesmo a estética, as cores e as texturas para dois mundos completamente diferentes.

Quis sempre trabalhar num filme desta época, portanto quando se concretizou a possibilidade de trabalhar no ‘Nightmare Alley’ fiquei encantado pois podia usar as referências que tinha

Foi difícil introduzir o efeito noir do filme no design do vestuário?

Por um momento pensei que o Guillermo [del Toro] estivesse a pensar fazer o filme a preto e branco, mas isso acabou por não acontecer. Mas nós tínhamos as cores muito bem definidas para um mundo e para outro. Para o mundo da cidade eu queria a roupa e os têxteis a emanarem luz. Mesmo se o filme fosse a preto e branco, eu queira que as roupas dessem esse efeito. Então, as cores eram muito precisas, mesmo tendo em conta as cores dos espaços interiores de cada sítio onde estávamos a filmar. Fazíamos uma escolha para que as cores das roupas estivessem em harmonia com os espaços interiores.

Tive muita sorte de poder ir à Europa três vezes para trazer roupa para o filme e comprar tecidos e muitas coisas que acabam por ser o coração do filme. Acho que se não tivesse ido à Europa, o vestuário não teria o mesmo look, o mesmo estilo. O Guillermo gostou muito da roupa de Espanha, e foi um dos países onde fui para trazer o que era preciso para o filme.

Que pesquisa fez e qual foi o processo para reunir os materiais que desejava para conceber o vestuário das diferentes personagens? Por exemplo, no caso da personagem do Bradley Cooper há uma evolução. Inicialmente vestia roupas com um aspeto mais antigo, que se ajustavam mais ao ambiente de circo e depois passa para um extremo diferente, um estilo mais refinado. 

Eu tenho vários livros e catálogos. Mesmo antes deste filme ser realizado eu já os tinha. Quis sempre trabalhar num filme desta época, portanto quando se concretizou a possibilidade de trabalhar no ‘Nightmare Alley’ fiquei encantado pois podia usar as referências que tinha. No mundo feirante, eles estão no início dos anos 30. As pessoas desse mundo não tinham dinheiro e ainda estavam a ser afetadas pela Grande Depressão. Então, a roupa era toda velha, e mesmo concebendo a roupa – e nós concebemos muita roupa para o filme – tivemos de pintar, esfregar, lavar e preparar o tecido para mostrar que essa roupa tinha vida, tinha história. Há uma parte do filme na feira com chuva, e as personagens da feira precisavam de uma quantidade de roupa maior. Por isso, eu não podia usar roupa original, tive que fazer tudo. Tinha uma equipa enorme, com cinco pessoas a cortar e a fazerem os fatos, 12 pessoas a cozer e seis pessoas a pintarem e a darem efeitos na roupa para que parecesse velha. Isso não se percebe no filme, o que é um sucesso. As pessoas veem o filme e não percebem que aquilo foi feito talvez dois ou três dias antes das cenas serem gravadas.

Para mim e para a minha equipa era um projeto enorme. Como já disse algumas vezes, era como um puzzle. Num puzzle, se pensarmos em tudo, ficamos doidos. Mas como nós só filmámos em pequenas partes, nós podíamos fazer cada peça necessária para completar as filmagens.

Em relação à cidade, toda a gente tinha dinheiro, roupas novas e fizemos roupa de noite, roupa de dia, fizemos toda a lingerie. Foi uma outra onda. Filmámos o filme assim, uma onda foi a feira e a outra foi a cidade. Também neste caso da cidade, mesmo a roupa que foi concebida no momento tivemos de fazer parecer que já tinha algum tempo.

Faço isto com o meu amor, com o meu esforço, e não com o objetivo de procurar um Óscar ou qualquer outro prémio

O trabalho de ‘costume design’ no filme está a ser muito elogiado. Tem expectativas de conseguir uma nova nomeação para os Óscares por ‘Nightmare Alley’?

Quem sabe… Eu estou muito contente por as pessoas gostarem da roupa. Já recebi uns emails e umas mensagens de pessoas que fazem o mesmo que eu e que estão muito contentes com o trabalho, e para mim é mesmo isso que importa. Faço isto com o meu amor, com o meu esforço, e não com o objetivo de procurar um Óscar ou qualquer outro prémio. Quero fazer o melhor pelo realizador, o Guillermo, e sou uma de muitas pessoas que trabalharam no filme. Para mim o mais interessante é fazer uma coisa que vai permanecer no mundo mesmo depois de eu partir. O meu trabalho e o trabalho da minha equipa vão estar num filme para serem vistos. Acho que isso é romântico, é algo bonito.

O Guillermo del Toro é um homem que sabe imenso e já aprendi muito com ele

Já conta com diversas colaborações com o realizador Guillermo del Toro. Essa experiência acumulada e o conhecimento que já tem do que del Toro pretende ajuda a desenvolver o seu trabalho ou é um desafio contínuo face às ideias sempre peculiares que este realizador tem?

Eu tenho de agradecer ao Guillermo pela minha carreira nos últimos anos. Não há dúvidas de que trabalhei muito para aqui chegar e ainda continuo a trabalhar. Eu comecei a trabalhar em 2012 com ele no filme ‘Mama’, no qual ele era produtor, e depois trabalhámos na série ‘The Strain’ durante três anos. Todo esse tempo permitiu-me ter um conhecimento da estética do Guillermo. Não quer dizer que não tenhamos pontos de vista diferentes relativamente a algumas coisas, mas eu sei como ele vê as coisas. É um homem que sabe imenso e já aprendi muito com ele.

No ‘Nightmare Alley’, com a Covid-19, eu estava a trabalhar numa ‘ilha’. A nossa equipa estava numa ‘ilha’ diferente da ‘ilha’ da equipa de filmagem, e mesmo quando ia para o local onde estávamos a filmar estava um pouco de fora. No ‘The Shape of Water’ ele entrava todos os dias pela zona onde estava a equipa de roupa para ir para o estúdio onde iam filmar. E todos os dias perguntava-me ‘O que é que tens hoje? Quero ver uma coisa nova’. Mas neste filme, e face a esta situação, não foi possível voltar a ser assim. Para ser sincero, senti falta disso. Senti falta desse convívio diário com o Guillermo, de lhe poder mostrar alguma coisa. Mas tendo em conta o conhecimento que tenho do estilo dele, que é muito semelhante ao meu, conseguimos fazer o que era preciso para o ‘Nightmare Alley’.

Está envolvido num novo projeto com o Guillermo del Toro, o ‘Cabinet of Curiosities’. O que nos pode adiantar sobre o seu trabalho para esta série de antologia? 

É uma série para a Netflix. Posso dizer que são algumas das estórias favoritas do Guillermo e são de épocas diferentes. Uma pode ser dos anos 70, outra dos anos 30. É uma série muito diferente, com realizadores diferentes para cada episódio, com estilos muito diferentes. Estamos agora a filmar o último episódio. Tem sido um trabalho muito intenso. É como se fossem oito filmes, um atrás do outro. Estamos a filmar um e já estamos a preparar o outro. A roupa dos anos 30 está a sair e já estamos a preparar a roupa dos anos 50. Sai a roupa dos anos 50 e entra a dos anos 70. Estamos muito contentes com o produto, mas ao mesmo tempo estamos felizes por estar quase a acabar. Tem sido um projeto realizado em período de Covid, com muito tempo de produção. Estivemos com máscara, com equipamento de proteção e também com os protetores acrílicos. Foi muito esgotante.

A indústria do cinema tem estado muito em cima do problema, com muito sucesso, e quase sem surtos de Covid-19

Como tem sido este período da pandemia em termos profissionais para si? Houve muitas interrupções em produções de cinema e televisão. Algum dos projetos em que trabalhou foi afetado?

Eu tenho de aplaudir os produtores de filmes, a comunidade cinematográfica, pois leva esta situação muito a sério. Eu sou testado todos os dias em que trabalho. Estamos na nossa bolha e acho que só tivemos dois ou três surtos, mas nada de grave. Temos um departamento de Covid nas filmagens, a higienização, temos protocolos preparados. É muito organizado e tudo com o propósito de proteger os atores e as pessoas que trabalham no filme.

É claro, seguir estes protocolos requer algum esforço. Usar uma máscara 14 horas por dia é difícil. Eu lembro-me quando isto começou. Todos nós dizíamos ‘Não vai ser possível. Como é que vamos fazer isto?’, e fizemos. No trabalho com a minha equipa, eu dizia-lhes de manhã, à tarde, para irem ao exterior e respirarem ar fresco. Na nossa equipa nós gostamos de trabalhar com muita intensidade, todo o dia, sem pausas. E eu andava pelo espaço onde estávamos a trabalhar e dizia às pessoas para irem saindo, para terem essa pausa. Porque era importante isso acontecer, as pessoas saírem um pouco do trabalho.

Mas como disse antes, penso que a indústria do cinema tem estado muito em cima do problema, com muito sucesso, e quase sem surtos da doença.

Sentiu muito o impacto das restrições motivadas pela pandemia no trabalho de pesquisa, que como referiu implica viajar para procurar materiais, para vê-los pessoalmente? 

Todas estas restrições acabaram por afetar. Eu fui à Europa três vezes. Fui a Itália, a Espanha, a Inglaterra e também fui a Portugal uns dias, só para lá estar. Fui ao Porto e comprei coisas lá na feira para o filme. Mas tudo isso acabou quando começou a pandemia. Agora estou a receber fotografias, que é como fazia antigamente. Mas não gosto. Nós trabalhamos em algo que requer muito tato, gostamos de sentir o tecido, pegar-lhe e ver o que o tecido ou a roupa fazem. É desapontante fazer isso através de fotografias, porque quando chega o tecido ou a roupa dizemos ‘Ó meu Deus’, pois não parecia ser assim. Mas felizmente tenho pessoas que têm estado a trabalhar para mim nessas cidades e que podem pesquisar e ver as coisas. 

O Luís já trabalhou em projetos cuja ação decorre em décadas diferentes, em filmes com tons diferentes, com conceções de vestuário completamente distintas. Há algum projeto que remeta para um estilo de vestuário em que gostasse de trabalhar e que pudesse ser um desafio aliciante no futuro? 

Eu tive a oportunidade de fazer um filme de ficção científica, mas estava ocupado a trabalhar no ‘Nightmare Alley’. O projeto era fantástico, era tudo muito bom, mas eu estava exausto. Iria acabar o trabalho em que estou envolvido agora em dezembro e começar esse projeto em janeiro. Gostava de fazer um filme desses. Outra coisa que gostava era de trabalhar num filme dos anos 20, com personagens que estivessem no topo do mundo e depois com o crash da bolsa haver essa mudança na situação das personagens. Gostava de fazer isso porque gosto de estórias que mostrem mundos diferentes.

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