Festivais têm feito os "mínimos olímpicos" em questões de acessibilidade

“Os [grandes] festivais não aconteceram nos últimos dois anos [devido à pandemia da covid-19], mas, até então, a grande miríade de festivais de música em Portugal fazia os mínimos olímpicos para o público” com deficiência, referiu Tiago Fortuna, em declarações à Lusa, apontando como exceções, o Boom Festival, em Idanha-a-Nova, e o Bons Sons, em Tomar, “bons exemplos” de acolhimento.

Tiago Fortuna, que se desloca em cadeira de rodas, fundou em janeiro deste ano, com Jwana Godinho, a Access Lab, “uma empresa com uma missão social: garantir o acesso de pessoas com deficiência e surdas à cultura, enquanto um Direito Humano”.

A Access Lab é uma empresa e não uma associação, porque os seus fundadores, ligados ao setor dos espetáculos há vários anos, acreditam que “estas pessoas são uma potência económica, e merecem ser encaradas dessa forma por todo o setor”.

O trabalho da Access Lab divide-se “num conjunto de ações e serviços, que passa por diagnosticar necessidades, criar planos de intervenção, desenhar ações de capacitação, e depois fazer todo um trabalho de mediação e aproximação dos públicos, com deficiência e surdos, da Cultura”.

“Porque apesar de termos 1,7 milhões de pessoas com algum tipo de incapacidade em Portugal, temos em muitos eventos fraca afluência. E é preciso pararmos e pensarmos porque é que isto acontece, irmos ter com as pessoas, trazê-las e fazê-las representar-se nestes espaços, que também são delas por direito”, referiu Tiago Fortuna.

Em fevereiro, a Access Lab foi um dos projetos selecionados para receber apoio financeiro do Fundo +PLUS da Casa do Impacto da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Com esse apoio, serão desenvolvidos projetos-piloto, tendo começado pelo Festival Política, que decorre em abril em Lisboa e em maio em Braga.

“Tivemos grande adesão do público surdo e as pessoas vieram ter connosco a dizer que não costumam ter este tipo de oferta, que se sentiram muito confortáveis com a forma como o festival as acolheu”, contou Tiago Fortuna, revelando que a Access Lab está a “iniciar trabalho” com o festival Iminente, marcado para setembro em Lisboa, e com a Altice Arena.

Em relação aos festivais de música, cuja época forte em Portugal começa este mês, “já existe cada vez mais reserva de estacionamento, há entrada prioritária e existe uma plataforma [área reservada a pessoas com mobilidade condicionada], mas, na maior parte dos casos, essa plataforma é tão longe do palco que as pessoas ficam completamente deslocadas e não se conseguem integrar ou aproveitar os concertos da mesma forma”.

Por vezes as plataformas ficam lotadas e, embora já haja alguns festivais que disponibilizam ficha de inscrição para estes espaços, a Access Lab defende a criação de categorias de bilhetes, “tal como em salas, em que há lotação especifica para pessoas com mobilidade condicionada ou surdas, que permitisse no ato de compra de bilhete que a pessoa tivesse um conjunto de informação à sua disposição, sobre estacionamento, entrada, programação, percursos”.

De acordo com Tiago Fortuna, “isto faz-se em alguns países”, dando como exemplo o Reino Unido, “e é uma lotação que esgota, e quando esgotarem não se consegue acomodar mais pessoas e não se está a fazer remendos no dia, como retirar os acompanhantes” das plataformas.

Além disso, alguns recintos “carecem de casas de banho”. “Põem-se muito poucas casas de banho [adaptadas] e depois as pessoas têm de percorrer distâncias muito grandes”, lamentou.

A juntar a tudo isto há “outra grande questão”, que é “uma batalha” para a Access Lab: “Os sistemas de bilheteira têm de ser reformulados”.

“Temos de deixar de cobrar bilhete a assistentes pessoais [estatuto formal de pessoa que trabalha para dar autonomia à pessoa com deficiência] ou acompanhantes de pessoas com deficiência [alguém próximo da pessoa, que a consegue apoiar durante um evento, para que ela tenha maior autonomia, conforto, etc.]”, defendeu Tiago Fortuna.

Em Portugal é cobrado bilhete de acompanhante, “ao contrário das grandes sociedades europeias e dos grandes festivais e salas europeus”. “E isto cria uma situação em que a pessoa vai sozinha ao evento e arrisca o seu bem-estar pessoal. Por exemplo, não vai à casa de banho, porque não tem quem a ajude, não vai comprar bebida nem comida, porque não consegue chegar ao balcão e, se calhar, vai ter dificuldade em aceder a algumas partes do evento”, descreveu.

A outra hipótese “é pagar os dois bilhetes, e isso é uma profunda injustiça, que gera nas pessoas um grande impedimento ao nível económico”.

Além disso, “há ainda a questão dos recursos de programação acessível”.

“Além do Boom e outros exemplos mais residuais, os festivais do ‘mainstream’ nunca tiveram interpretação em língua gestual portuguesa, ou um acompanhamento dedicado às pessoas surdas, e as pessoas surdas gostam desse tipo de ambiente, porque gostam de sentir a vibração do som, e com língua gestual conseguem acompanhar os espetáculos”.

O Rock in Rio Lisboa, que decorre este mês, anunciou esta semana que terá, pela primeira vez, concertos com interpretação em Língua Gestual Portuguesa.

Tiago Fortuna lembra ainda que “as pessoas cegas também podem sentir-se incluídas, se o espaço for desenhado a pensar nelas, se tiverem condições de segurança, se tiverem audiodescrição”.

“Os nossos festivais ainda estão num momento muito incipiente”, observou, sublinhando que “é tempo de mudar um pouco paradigmas”, e que “foi para isso que a Access Lab foi fundada”. Tiago Fortuna acredita que “haverá algumas boas surpresas este ano”.

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