Filme ‘Diários de Otsoga’ regista desejo de regresso à vida em comunidade

 

Diários de Otsoga – que se estreia em Portugal na quinta-feira, um ano depois de ter sido rodado – não é um filme sobre a pandemia ou sobre o confinamento. “Tem qualquer coisa de antídoto a este tempo. É um filme sobre estar com outras pessoas”, afirmou Miguel Gomes, em entrevista à agência Lusa.

O filme foi feito em 22 dias, num registo diarístico, com os atores Crista Alfaiate, Carloto Cotta e João Nunes Monteiro fechados numa casa com um jardim, onde decidem construir um borboletário.

O argumento é de Mariana Ricardo, Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes, e todos eles – técnicos, atores, duas cozinheiras e outros elementos da produção – entram no filme, discutindo e construindo coletivamente a narrativa à medida que ela foi sendo feita.

“Não houve escrita, não houve trabalho de preparação. Fazia parte da ideia do filme de, no local, tentar improvisar um filme com a equipa”, tendo apenas algumas ideias de base da estrutura, contou Maureen Fazendeiro à Lusa.

No entanto, este é um diário fílmico invertido, com os realizadores a subverterem a lógica temporal. O início do filme, que começa com um beijo, é na verdade o último dia da rodagem, e à medida que os dias são filmados percebe-se a intromissão da pandemia na produção.

“Havia a ideia de ter um beijo, porque era a coisa mais proibida nessa altura e que se comentava no cinema; era que as cenas de intimidade física entre atores passavam a ser completamente impossíveis”, explica Miguel Gomes.

Para o realizador, este filme é sobre o desejo de se reconectar com as outras pessoas.

“É um filme sobre uma velha questão que existe agora, com covid ou sem covid, ‘como é que é esta coisa de vivermos juntos, de sermos uma comunidade’. Esse desejo de filmar uma comunidade nasceu como reação ao isolamento que nos foi imposto, do confinamento”, disse.

‘Diários de Otsoga’ foi feito com um orçamento muito limitado e com um espírito de responsabilidade partilhada e igualdade entre todos. “Decidimos que, uma vez que havia muito pouco dinheiro para fazer, todos receberíamos o mesmo, da cozinheira ao diretor de fotografia”, disse Miguel Gomes.

O filme, que teve estreia em julho no Festival de Cannes (França), passará nos festivais de Toronto (Canadá) e de Karlovy Vary (República Checa), chegando aos cinemas portugueses numa altura em que tanto Maureen Fazendeiro como Miguel Gomes tentam retomar os projetos que ficaram em suspenso com a pandemia.

Maureen Fazendeiro iniciará em setembro a rodagem de ‘As estações’, uma docuficção passada no Alentejo, e Miguel Gomes prepara ‘The Grand Tour’, que “seguramente será rodado [em estúdio] na Europa”, embora a história remeta para a Ásia.

Era nesse continente que estava Miguel Gomes, em fevereiro de 2020, na preparação deste filme, quando surgiu a pandemia. Conseguiu fazer um arquivo de viagem, para traçar o trajeto das personagens e o resto deverá ser feito em estúdio, no primeiro semestre de 2022.

Quanto a ‘Selvajaria’, que adapta o livro ‘Os sertões’, de Euclides da Cunha, e será rodado integralmente no Brasil e com elenco brasileiro, está ainda a aguardar melhores dias.

“Com o contexto atual e ainda por cima no Brasil, não há qualquer hipótese de fazer um filme desta dimensão”, disse.

Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes, tal como dezenas de outros profissionais do cinema e audiovisual, retomam a atividade numa altura em que ainda não entrou em vigor a atualização da lei do cinema, à luz de uma diretiva europeia, e que está por apresentar o novo plano estratégico para o setor, para os próximos anos.

“Sabemos que temos um secretário de Estado que é sobretudo do Audiovisual, vem desse setor, tem uma cultura que tem a ver com esse setor e um entusiasmo juvenil pelo mundo novo das plataformas [de ‘streaming’]. Vamos ver o que se vai passar”, disse Miguel Gomes, a propósito da aplicação da regulamentação legislativa para o setor, promulgada na semana passada pelo Presidente da República.

“Estou muito desconfiado dos resultados disso. Vamos ver em termos políticos o que é que esta paixão do secretário de Estado vai causar no cinema em Portugal”, opinou o realizador.

‘Diários de Otsoga’ estreia-se na quinta-feira em 12 salas do país.

Os dois realizadores estarão na quinta-feira numa sessão no Cinema Ideal, em Lisboa.

No domingo, Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes apresentam o filme no Cinema Trindade, no Porto.

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