Livro da escritora Nélida Piñon apresentado na sexta-feira em Lisboa

O livro vai ser apresentado na sexta-feira, na Fundação José Saramago, em Lisboa, pela escritora portuguesa, que destaca desde logo, na abertura, o modo como esses “dois campos distintos” foram unidos “de uma forma conjugada na escrita” pela autora de ‘A casa da paixão’.

Numa referência ao “belo título” do derradeiro livro da escritora brasileira, ‘Os Rostos que Tenho’, Lídia Jorge escreve: “Penso que todos os rostos da sua representação múltipla derivam desta dicotomia geminada original, que é o facto de o sagrado e o profano estarem unidos em Nélida desde a raiz da sua primeira palavra, a primordial, a qual parece coincidir com a palavra amor. Amor pela criação inteira, entenda-se”.

A autora de ‘Misericórdia’ cita o escritor francês Marcel Proust, que escreveu sobre os mistérios do rosto, e refere que a “multiplicidade e ao mesmo tempo unidade das várias máscaras de uma escritora é o que se depreende destas 147 breves crónicas de alma, ou exercícios do pensamento, que constituem este testemunho vital” de Nélida Piñon, ‘Os Rostos que Tenho’, completado pouco antes da sua morte, em 17 de dezembro do ano passado, em Lisboa.

“Nélida surge, assim, cindida em duas, a batizada, aquela que crê em Deus e se submete ao seu intransigente decálogo, como refere no início do primeiro fragmento [do livro], e a outra, a libertária profana, porta-voz daqueles que desejam viver sem o ordálio da crença, e apenas saboreiam o pão, a água e o vinho, a vida inteira na mistura do sangue com a lama, e desse mundo imanente a escritora deve dar contas independentes, soberbas e carnais, com palavras de sobreaviso sobre um mundo onde a divindade surge enigmática e escondida”, escreve Lídia Jorge.

Para a autora de ‘O Dia dos Prodígios’, “este livro não careceria de qualquer apresentação”.

“Ele próprio se vai apresentando por si mesmo, à medida em que os fragmentos numerados se sucedem, desde o primeiro com o título de ‘Eternidade’ (…), até à crónica 74, intitulada ‘O Mutismo de Deus’, na qual explica em síntese a génese da sua atividade como criadora, e o sentido da sua vida como pessoa da arte e da cultura em face do mundo e da humanidade”, justifica Lídia Jorge.

A autora de ‘O Cais das Merendas’ realça o “temperamento apaixonado” de Nélida. Daí que estas “crónicas de pensamento se revistam de uma linguagem afetiva, por vezes messiânica e litúrgica, com ofertório e epifania, e que todo o bem-querer seja vigoroso e luxuriante, marca fortíssima da sua obra ficcional e ensaística”.

Sobre o facto de ‘Os Rostos que Tenho’ ser o último livro publicado da autora brasileira, Lídia Jorge defende que “não é um mas dois livros”, e cita ‘Um Dia Chegarei a Sagres’ (2020), “a sua obra de estrela ficcional” e ‘Os Rostos que Tenho’ que se aproxima dos autores cujos últimos livros refletem “o pensamento discursivo sobre o momento único que os escritores vivem”, e refere o último título do escritor alemão Günter Grass (1927-2015), ‘Sobre a Finitude’.

“Ao contrário de Grass, a contemplação do fim da vida em Nélida encontra um sentido que transcende a amargura da deterioração do corpo e do adeus ao mundo conhecido”.

“‘Os Rostos que Tenho’ resulta da consciência aguda de que se trata de um livro remate, um testamento sobre o sentido de uma existência de que está avisada que a agenda pode virar de um momento para o outro a sua última página”.

“Dessa visão da insignificância humana — prossegue Lídia Jorge -, surge uma espécie de renascimento da alma, e depreende-se que da grandeza desse enfrentamento feito palavras resulta este livro”.

Nélida Piñon, autora de mais de 20 livros, entre novelas, contos, literatura infantojuvenil, ensaios e memórias, Nélida Piñon foi a primeira mulher a presidir à Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleita em 1989, sucedendo a Aurélio Buarque de Holanda.

A escritora brasileira estreou-se com o romance ‘Guia-mapa Gabriel Arcanjo’, em 1961. Recebeu o Prémio Internacional Juan Rulfo de Literatura Latino-Americana e do Caribe, em 1995, o que aconteceu pela primeira vez a uma mulher e a um autor de língua portuguesa.

Foi ainda distinguida com o Prémio Bienal Nestlé, na categoria romance, pelo conjunto da obra, em 1991, e com o Prémio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e o Prémio Ficção Pen Clube, ambos em 1985, pelo romance “A República dos Sonhos”.

A Academia Brasileira de Letras destaca precisamente este romance no percurso da escritora, uma obra sobre uma família de imigrantes galegos no Brasil, em que “faz reflexões sobre a Galiza, a Espanha” e o país de destino.

Igualmente assinalada pela Academia Brasileira de Letras, quando da sua morte, foi a obra de 1972, ‘A Casa da Paixão’, “um de seus melhores e mais conhecidos romances”, que recebeu o Prémio Mário de Andrade.

A sua obra anterior, ‘Um Dia Chegarei a Sagres’, lançada em 2020, ganhou o Prémio Pen Clube de Literatura.

Nélida Piñon licenciou-se em jornalismo em 1956 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, tendo colaborado em jornais e revistas literárias, e foi correspondente no Brasil da revista Mundo Nuevo, de Paris, e editora assistente dos Cadernos Brasileiros.

O livro ‘Os Rostos que Tenho’ será apresentado por Lídia Jorge e pela presidente da Fundação José Saramago, Pilar del Río, na próxima sexta-feira, às 19:15, na Casa dos Bicos, sede da Fundação, em Lisboa.

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