“Aborto Não é Crime” era o título do programa exibido pela RTP em fevereiro de 1976, da autoria da jornalista Maria Antónia Palla, que provocou uma polémica tal que viria a ser suspenso pelo seu marido e então presidente da televisão pública.
A partir de uma “clínica popular” da Cova da Piedade, a reportagem mostrava que a Interrupção Voluntária da Gravidez, “utilizando novas técnicas, precedida de discussões e apoio psicológico, podia ser praticada em segurança e respeito pela dignidade da mulher” e além disso “era gratuita”.
Na RTP choveram protestos. A Maternidade Alfredo da Costa apresentou queixa contra a jornalista por “exercício ilegal de medicina”, o CDS considerou o programa “uma ofensa à moral pública e incitamento ao crime”.
“O meu marido, que na época era Presidente da RTP, suspendeu o programa. Eu e toda a equipa fomos chamados à Polícia Judiciária”, relata a jornalista, hoje com 88 anos, no livro que será apresentado quinta-feira na Gulbenkian numa sessão com a escritora Inês Pedrosa, autora do prefácio, a catedrática Zília Osório de Castro e o ex-ministro Guilherme d´Oliveira Martins.
Como autora, acabaria por ser a única acusada pelo crime de “ofensa à moral pública e incitamento ao crime”, o que viria a gerar um movimento de solidariedade para consigo, desde partidos políticos até à Federação Internacional de Jornalistas ou da célebre advogada francesa Gisele Halimi e originar petições de grupos de mulheres em sua defesa.
“No final de junho, após um julgamento muito mediatizado, fui absolvida. O juiz Afonso de Melo considerou que eu, como jornalista, tinha não só o direito como o dever de denunciar um problema que afetava a sociedade portuguesa. Defendeu ainda que a Lei em vigor devia ser revista. E absolveu-me”, escreve.
Outro dos episódios narrados por Maria Antónia Palla é o do encerramento da Caixa de Previdência dos Jornalistas, um subsistema de saúde, fechado no início do consulado político de José Sócrates.
A autora descreve o processo, com amargura, referindo que o encerramento ocorreu após uma dedicação de 10 anos como presidente e ter contas positivas e até dar lucro.
“Dediquei 10 anos à Caixa. Apesar de todo o trabalho realizado, a 15 de dezembro de 2006, o então Secretário de Estado da Saúde, Francisco Ramos, anunciou-me, numa reunião que fora marcada pelo Ministro da Segurança Social, Vieira da Silva, para tratar de questões de pessoal, que a partir de 31 de Dezembro o Ministério não pagaria mais nenhuma despesa que fosse enviada pela Caixa. Quanto a esta, seria encerrada”, escreve.
E prossegue: “Era um golpe anunciado. Mas foi fatal. Havia pessoas a fazer tratamentos de quimioterapia que ficaram desamparadas, sem que nenhuma alternativa nos tivesse sido dada. Outras, tinham doenças que impunham tratamentos caros e urgentes…A Caixa era o seu refúgio e nada podíamos agora fazer. Que isto pudesse ter sido feito por um Governo dito socialista, ultrapassava-me. As minhas relações com o PS esfriaram. Estávamos nas vésperas do Natal. A ocasião foi perversamente escolhida”, assinala.
A deslocação à Jamba, em Angola, para se encontrar com o então líder da UNITA Jonas Savimbi, a sua passagem pelo jornal “O Século” e a criação da biblioteca feminista Ana de Castro Osório, em Lisboa, são outros dos temas focados pela autora.
A este propósito, responde à pergunta se haveria necessidade de uma biblioteca feminista: “Sim, porque a problemática das mulheres está longe de ser conhecida e os feminismos constituem uma corrente de pensamento e de ação cívica e política que não pode ser ignorada”.
Maria Antónia Palla não deixa também de retratar casos mais pessoais, como a forma como o seu filho, António Costa, hoje primeiro-ministro de Portugal, aceitou a sua relação com o então capitão Manuel Pedroso Marques.
“O meu filho e eu tínhamos o hábito de discutir todos os problemas. Mas era a primeira vez que se deparava com um assunto tão delicado. Falámos. Com o sentido prático que sempre teve, disse-me:’convide-o para vir passar um fim de semana a casa, depois veremos'”.
“Assim fizemos. O Manuel ficou aprovado”, relata Maria Antónia Palla.
Em O Relógio de Cuco, a jornalista descreve vivências pessoais e íntimas, mas também profissionais e políticas, que transportam o leitor para contextos socioculturais da Primeira República, do Estado Novo, da Revolução e do pós – Revolução do 25 de Abril de 1974.
A coleção Autorretratos homenageia mulheres portuguesas que, ao longo dos séculos XX e XXI, tenham contribuído para a afirmação de uma sociedade democrática, mais livre, fraterna, justa e equitativa. Maria da Glória Garcia, professora catedrática e reitora da Universidade Católica Portuguesa (entre 2012 e 2016) foi a primeira homenageada.
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