‘Mistura’ é o novo álbum de Katia Guerreiro e é editado a 18 de novembro

“Assumimos de uma forma muito tranquila”, a reunião dos três produtores que assinam o álbum, disse a fadista em entrevista à agência Lusa, recordando que José Mário Branco, que morreu em novembro de 2019, tinha produzido o seu anterior álbum, “Sempre”.

“Achei que estes temas [“Xaile Negro” e “Tempo de Viver”] que fiz com o José Mário tinham de ser recuperados, era o que tínhamos previsto, pois íamos continuar a trabalhar juntos. O Pedro de Castro é o meu braço direito e meu diretor musical, e recuperámos o Tiago Bettencourt que foi o primeiro produtor musical que eu tive, foi o primeiro a dar-me a mão”.

“Junto num disco só, três pessoas que tão importantes para mim, nestes últimos oito anos, desde 2014”.

Tiago Bettencourt produziu os temas “Pergunta Atrevida”, “Já Não Me Perco no Mar” e “Que Passo Queres dar”.

Pedro de Castro, por seu turno, produziu os restantes sete: “Mistura”, “Lisboa Perdeu a Voz”, “Vida de Fado”, “Esqueci-me da Alegria”, “Cais da Saudade”, “O Santo António da Aldeia” e “Espelho Teu”

A criadora de “Segredos” (Paulo Valentim) disse que em 2014 “estava a perder um bocadinho a mão”.

“Estava a ficar deslumbrada com a voz, porque a minha voz estava a amadurecer e precisava de recuperar a minha origem no canto, no fado. O Tiago foi o primeiro a ajudar-me a fazer isso. Depois [foi] com o Pedro ao meu lado, e o José Mário. E eu achei que tinha de juntar estas três almas maravilhosas num disco só”.

O álbum será comercializado em formato de livro, com um “QR Code” que dá acesso à gravação, e várias notas da fadista sobre os temas, além da identificação dos autores e acompanhadores.

“Mistura” abre o álbum e dá o título ao projeto, com música de Pedro de Castro, denominada “Fado Alma!. “Mistura” é um poema de Maria Luísa Baptista, falecida em 2016, e que desde sempre faz parte do repertório da fadista com temas como “Asas”, “Muda tudo. Até o mundo” e “Tenho uma saia rodada”. Neste disco assina ainda “Esqueci-me da Alegria”, poema musicado por Pedro de Castro (através do Fado Maria Luísa).

O álbum totaliza 12 temas, entre eles “Espelho Teu”, com letra e música de Rita Redshoes, “Cais da Saudade”, de Pedro Rapoula, com música de Pedro de Castro, “Não me Perco no Mar”, letra e música de Hélder Moutinho, “Vida de Fado”, de João Monge e Zeca Medeiros, e “Que Passo Queres Dar”, letra e música de Tiago Bettencourt.

À Lusa, Katia Guerreiro reconheceu que, entre os temas escolhidos, perpassa um certa crítica aos caminhos que o género fado tem tomado, nomeadamente através de “Lisboa perdeu a voz”, de Manuela de Freitas, musicado por Tiago Curado, e “Pergunta Atrevida”, de Carlos Mendonça (1939-2016), musicado por Pedro de Castro (Fado das Biscoiteiras).

A fadista realçou que o poema de Carlos Mendonça foi escrito em 1990, e que lhe foi entregue pelo autor no início deste século. “Já nessa altura tinha esse sentido crítico aos caminhos do fado”.

O poema de Carlos Mendonça questiona “se não há tempos de outrora/ por serem tempos passados”, porque se continua a cantar “aiis à Mouraria”, e se “fala de um Bairro Alto/ atrevido e avinhado/ mas lá até o basalto/ anda mais sofisticado”.

No poema de Manuela de Freitas, Katia Guerreiro canta que “já nem se ouve o fadista”, entre “bateria, acordeão/, projeções [e] fogo de vista”, e daí que o “fado se fosse embora”, mas talvez “esteja escondido nalguma viela escura”.

Katia Guerreiro defendeu “que toda a música sofre evoluções, naturalmente. A própria Amália [Rodrigues] foi um grande motor de evolução no fado”, mas ressalvou: “Quando falamos de fado não nos podemos esquecer que é uma identidade cultural e, a partir do momento que o fado começa a misturar-se, ou a apresentar-se exclusivamente com registos que não são da sua origem, a determinada altura começamos a ficar um bocadinho desanimados e preocupados com o futuro que o fado possa começar a levar”.

A fadista referiu “um conjunto de artistas emergentes que, na tentativa de chegar ao êxito, e ao reconhecimento de alguns nomes maiores do fado da atualidade, no fundo acabaram por adotar outros registos, outras sonoridades, outras formas de se apresentar. Essas novas gerações vão muito arrastando-se por esse caminho. Depois, a determinada altura, não temos quase ninguém a representar como conhecemos o fado de origem. E isto não significa de todo não se ser moderno”.

“Defender o fado não significa não se ser moderno ou não aceitar a evolução”, enfatizou a fadista, citando este novo trabalho.

“As composições que apresentamos neste disco, mesmo as de caráter mais tradicional – e há novos fados tradicionais neste disco -, são compostas, não da forma simplista como eram compostos há 100 ou 150 anos, mas têm uma estrutura e estética musicais que são muito contemporâneas e muito diferentes e evoluídas em relação àquilo que o fado era. E há as escolhas poéticas que têm naturalmente a ver com a atualidade, uma poesia mais contemporânea e mais intemporal que não sejam as historiazinhas de bairro – isso já se abandonou há algum tempo”.

Referindo-se a “Lisboa Abandonou a Voz”, Katia Guerreiro afirma que é “uma resposta a um outro tema”, “O Fado Fugiu de Casa” (2019), que gravou com os Anaquim, e que mostrou ao músico José Mário Branco (1942-2019) e à poetisa Manuela de Freitas, que, com “aquela sua espontaneidade”, escreveu este poema.

“Esta é a minha resposta aos Anaquim”, declarou a fadista.

Da lista dos cerca de 200 fados tradicionais existente, Katia Guerreira canta o Fado Mocita dos Cacaróis, de Alfredo Marceneiro, num poema de Manuela de Freitas, “Xaile Negro”.

A fadista reconheceu que este álbum confirma a sua identidade artística.

“Há uma coerência no caminho. Posso não provocar surpresa, a não ser na forma como escolho os temas poéticos para cantar, naturalmente, e na forma como eu visto as coisas, sendo que mantenho o meu cunho muito fadista, e mantenho-me muito fiel às minhas raízes enquanto artista”.

Do alinhamento faz parte “O Santo António da Aldeia”, um tema datado de 1953, “ao jeito de folclore”, de autoria do “poeta popular” Feliciano da Silva, de 92 anos, que Pedro de Castro, musicou. O poema veio ter às mãos da fadista pelo neto de Feliciano da Silva, que é amigo de Katia Guerreiro e, inicialmente, era previsto ser gravado para fazer uma surpresa ao autor no dia de apresentação de um livro seu, o que não aconteceu, e acabou por ser incluído neste projeto.

A intérprete disse que “foi uma grande sorte” ter-lhe chegado às mãos este tema. Feliciano da Silva “escreve de uma forma amadora, mas com muito cuidado”, “e é um retrato das festas das aldeias de Portugal, um tema divertido”.

Katia Guerreiro mantém viva a memória de José Mário Branco, que produziu o seu álbum anterior, e com quem gravou o tema “Quem Diria” (José Rebola).

“Não tenho pudor nenhum em dizer que, neste momento, quando canto, penso sempre no José Mário, para nunca mais me esquecer a forma como ele me fez revisitar a essência da palavra e recuperar a forma transparente como a nossa mensagem tem de chegar aos outros, sem artifícios sem distrações. Estar em palco ou a gravar um disco tem ser tão puro e cristalino como olharmo-nos nos olhos uns dos outros. A mensagem tem de chegar direta à pessoas, sem ter de fazer reviravoltas”.

À Lusa a fadista afirmou: “José Mário foi muito importante para mim”, e esclareceu em seguida: “Devolveu-me não só a simplicidade, como me trouxe uma segurança que eu acho que estava a perder”.

Sobre o autor e intérprete de “Inquietação”, a quem se refere como “mestrinho”, a fadista disse que “era um amante das palavras e um filósofo”, e recordou “as longas e maravilhosas conversas” que tiveram, referindo que o músico lhe deixou “muitos ensinamentos, daqueles que vamos guardar para a vida”.

“Das experiências mais gratas que tivemos”, disse a fadista referindo-se a si e aos músicos que habitualmente a acompanham, “foi trabalhar com o José Mário, que era um homem grande, grande na alma, no pensamento, nas suas reflexões, e na forma como nos queria dizer tudo aquilo em que acreditava neste caminho do fado”.

Neste álbum, Katia Guerreiro é acompanhada por Pedro de Castro e Luís Guerreiro, na guitarra portuguesa, João Mário Veiga e André Ramos, Francisco Gaspar, na viola baixo e contrabaixo, e conta ainda com as participações de Rui Veloso, na guitarra elétrica, em “Mistura”, e de Tiago Bettencourt, na viola e piano, em “Que Passo Queres Dar”.

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