"Não é preciso ser-se poeta para escrever sobre amor: é só preciso amar"

É difícil pensar em perguntas que Alice ainda não tenha ouvido e respondido. Nas últimas semanas, entrevistas atrás de entrevistas, podcasts e órgãos de comunicação correram para tentar falar com Alice Neto de Sousa, a poeta (não poetisa) cujas palavras sentidas, escritas e ditas, gritaram entre o barulho dos dias e das redes sociais.

No final de janeiro, depois de um ano a ir ao ‘Bem-Vindos’, um programa da RTP África onde participa regularmente para declamar poesia, Alice foi mais uma vez à televisão pública e disse um poema, ‘Poeta’  – os mesmos versos que escrevera para a gala da BANTUMEN, uma revista digital que aborda a “atualidade da cultura negra da lusofonia”.

Para o mundo finalmente a ouvir, Alice ‘apenas’ perguntou “o que raio era um lápis cor de pele” e o momento ganhou bastante repercussão nas redes sociais.

Alice não se quer fixar no poema que a fez saltar para os holofotes das redes sociais. A sua poesia não é só isso. “Como poeta, falarei de várias inquietações”, diz. Mas não esconde que viu com “muito orgulho” os seus versos terem tido a popularidade que tiveram e terem “suscitado reflexão e trazido uma das minhas inquietações ao de cima”.

Espera que a atenção não fique por aqui e garante que é uma poeta com “outras camadas além da óbvia”.

“A poesia não pode ser só um lugar comum. Não podemos agora pegar nesta pessoa e querer pô-la numa caixa porque nos convém. Parte, também, da poesia é poder ser algo um pouco disruptiva neste aspeto e, embora as pessoas estejam à espera (ou não) de um certo registo, irei sempre sair da caixa”, promete, em entrevista ao Notícias ao Minuto.

“A vida é um abismo silencioso,
Com milhares de palavras escritas no ar.
E, se não fosse do ruído ruidoso,
Quase que as ouvia falar.”

– excerto de ‘Abismo Silencioso’Alice Neto de Sousa não sabe desde quando é que expressa ou escreve as suas “inquietações”. Mas, tal como José Mário Branco cantava sobre as suas “inquietações” (a repetição da palavra é partilhada por ambos, ficando no ar se a escolha de vocabulário é intencional), também no desenrolar do processo criativo da jovem poeta – influenciado por problemas de visão – houve “sempre qualquer coisa que estava para acontecer”.

“A forma como via o mundo e encarava o mundo era, a meu ver, de certa forma poética, porque eu pensava, às tantas, que o barulho das folhas era o falar das folhas. E eu preservo um pouco esta inocência agora na vida adulta, esta parte mais de fantasia, de ser-se criança, e passo isso para a escrita. Mais do que a lembrança de escrever, lembro-me disso”, explica a poeta de 28 anos, formada em Psicomotricidade.

O início da sua escrita tomou várias formas: desde um verso “num daqueles papéis meio cor de rosa dos blocos de nota que nos oferecem”; a um conto “muito engraçado”, denominado ‘Acredites ou não: 1’, escrito primeiro à mão, passado depois a computador por uma colega e distribuído enfim pelos colegas da turma.

A história, conta o conto, era “uma espécie de ‘Saw’, aquele filme de terror, mas na altura não conhecia o ‘Saw’, veio mesmo de mim e da minha criatividade, e eu ‘matava’ todos os colegas”. “Era muito giro, todos gostavam e ficavam vidrados a ler”.

© André Ferreiro  

“Escrever sobre amor é inevitável”

A poesia de Alice Neto de Sousa incide sobre vários temas, mas a artista reitera que se interessa por problemas sociais que vai vendo na rua. E essa poesia ganhou novos contornos e atores quando começou a passar mais tempo pela baixa de Lisboa e, especificamente, pela estação de metro debaixo da praça Martim Moniz.

“Quando eu venho para o centro de Lisboa, naturalmente vou prestar atenção a vários aspetos que não me eram naturais, e algo que me saltou logo à vista foi a questão da prostituição. Onde eu morava não via prostituição, não era essa a minha realidade”, começa por dizer.

O escrever às prostitutas do Martim Moniz (e não sobre, como deixa claro) é acompanhado por um sentimento de ver “um mundo de certa forma doente”, onde problemas sociais de pessoas ignoradas se perdem nos “recantos e miradouros lindos” de Lisboa.

Não é preciso ser-se poeta para se escrever um bom poema de amor: é só preciso existires e amares alguém

Mas o coração de Alice Neto de Sousa não se vira apenas para fora, para os problemas que contempla, para o mundo que a inquieta. Se muitos de nós tiveram a sua fase de escrever poemas de amor – uns às escondidas, outros mais às claras, uns sem perceber ainda o que é o amor e outros com várias cicatrizes que a palavra lhes deixou -, Alice admite que continua a escrever bastante sobre amor “e, aliás, sobre desamor”.

“Acho que escrever sobre amor é inevitável. É um lugar comum, naturalmente, porque é um clichê. Não é preciso ser-se poeta para se escrever um bom poema de amor: é só preciso existires e amares alguém. E por acaso, infelizmente, tenho muitos poemas de desamor”, diz, recordando e dizendo de cor, entre sorrisos mais ou menos envergonhados, o primeiro poema de amor que se lembra de escrever:

Sempre pensei que não tinha sorte.
E de cada vez que fazia um corte
via o sangue vermelho como uma rosa
numa poesia que me soava a prosa.
Depois, apareceste e tudo mudou.
Até pensei que o azar terminou
fazias-me sentir bem
e passei a ser alguém.
Apaixonada e também iludida
eras o centro da minha vida.
Estavas comigo em todos os momentos,
só que na maioria em pensamentos
gostava de pensar em ti como algo que um dia ia ter
quis fazer parte de mim, aconteça o que acontecer.
Mas de repente a vela do nosso amor se apagou
e um novo dia recomeçou.
Um dia que parecia não ter fim.
As sombras tomaram conta de todo o meu ser
e foi aí que eu vi que me estava a perder.

O poema foi dito de cor, à semelhança de quando a sua interpretação de ‘Poeta’ se tornou viral – um poema que disse pela primeira vez de cor na gala da BANTUMEN. Antes interpretava os poemas a partir da folha; agora arrisca para que saiam diretamente “do coração”: “É um treino que tenho feito”.

“Os da Florbela Espanca eu sei de cor porque eu li o ‘Livro de Mágoas’ muitas vezes. Muitas! Por outro lado, quando falamos da minha poesia, eu só me apercebo que sei de cor quando o digo de cor”, explica.

O caminho pouco ‘tradicional’ para olhar o mundo

“A vida é um rodeio enorme”. A poeta Alice Neto de Sousa é também mestre em Psicomotricidade, pela Faculdade de Motricidade Humana. Para os olhares mais desatentos, esta talvez não seja uma carreira imediatamente conectada à poesia e à arte.

Mas a escritora vê na sua experiência um olhar único de ver e escrever o mundo.

“A vantagem que eu vejo de não ter ido para Letras foi que tenho outro ‘background’, tenho outro estofo, outro material dentro de mim para além daquele que é académico e sensível nas Letras. Fico contente do meu percurso, porque ser psicomotricista e aquilo que abarca, que aprendi, dá-me outra face na poesia”, argumenta.

© André Ferreiro  

Encontrou na Psicomotricidade o conjugar de duas áreas que lhe interessam: a educação e a saúde. “Antes disso pensei em ir para o teatro – na altura gostava muito, agora continuo a gostar mas de outra forma completamente diferente. Mas a Escola Superior de Teatro não era em Lisboa, não era prático para mim. Pensei em jornalismo, não tinha média. Ainda pensei em contabilidade. Podia ter sido qualquer coisa, cheguei a inscrever-me em filosofia, mas não. Precisava de algo que satisfizesse estas duas áreas que tenho interesse e a Psicomotricidade foi o caminho”, remata.

Conta, ainda, à Mensagem de Lisboa que um dos apoios na área foi o escritor (e professor universitário no seu mestrado) Gonçalo M. Tavares, que a convenceu a ler numa apresentação de um livro seu.

Um poeta só rima sem pressa

No seu Instagram, nos destaques, é possível ler, com o dedo colado ao ecrã e os olhos fixados em cada pixel, alguns dos poemas de Alice. Em páginas e sites, vão sendo também partilhados os seus textos.

No papel, os seus versos já foram publicados, nomeadamente pela Editora Ipêamerelo, que escolheu o último verso do seu poema ‘Terra’ para dar nome à coletânea ‘Do que ainda nos sobra da guerra – e outros versos pretos’, publicado no Brasil em 2021.

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“Tenho muitos poemas dispersos e por alguma razão é, porque sempre me fui esquivando à ideia de escrever algo completamente meu, acho que é uma grande responsabilidade. Dedico-me a um poema e encontro uma casa para esse um poema. Agora, porque descobri que não preciso só das antologias para dizer poesia, tenho vários poemas que digo e que não estão escritos, por isso também existe esta dispersão de poemas que estão no ar e estão a circular”, diz, sobre os seus versos espalhados pelos bites e bytes da internet.

A poeta esbraceja e satiriza que os temas que vai tratar não estão num ‘flyer’ com o nome “Conteúdos Programáticos de Poesia 2022!”. Ainda assim, há temáticas que a inquietam – além de querer partilhar o poema ‘Capital’, às prostitutas do Martim Moniz, e querer escrever sobre pessoas em situação de sem-abrigo, planeia aproveitar março para falar “sobre ser mulher”.

“Por acaso estava a pensar fazer algo assim mensal, mas algo espontâneo. As minhas inquietações mudam tanto. Por isso é deixar fluir”, diz, acrescentando ainda que “há tempo, e não preciso só de março para falar sobre ser mulher”.

“Contenho o braço inquieto que se quer entrelaçar,
Para melhor deslizar pelos sonhos fora.”

– excerto de ‘A um amor con(tu)ndente”‘Um livro, esse, terá de esperar. Afirma que já caíram propostas no correio, mas Alice admite que escreve devagar e, citando o centenário e prémio Nobel José Saramago, enaltece que um livro é uma responsabilidade e que precisa de sobriedade.

“Não achando que esteja no meu auge de escrita, estou em eterna construção, acho que era comerciável. Acho que as pessoas iriam comprar, nem que fosse pela curiosidade. E o que eu estou a tentar evitar é mesmo isso, é este sensacionalismo sobre aquilo que eu possa vir a publicar. Quero publicar de uma forma sóbria”, diz, concluindo que, para a sua poesia se concretizar, “é preciso deixar os poemas respirar”.

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