"Ouro branco" do património está a ser desvalorizado

No âmbito de um requerimento do Grupo Parlamentar do PSD, quatro dezenas de estruturas artísticas e agentes culturais estão desde hoje de manhã a ser ouvidas no parlamento, na Comissão de Cultura e Comunicação, sobre o impacto da covid-19 no setor da cultura, as dificuldades identificadas, e sobre propostas que têm apresentado à tutela para as mitigar.

Numa “maratona” de audições, a Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP), representada pelo vice-presidente, Luís Raposo, classificou o património como “o ouro branco do país”, para captar turismo, um dos “vetores valiosos para a economia”, e, “infelizmente, desvalorizado pelo Governo”.

Perante os deputados, falou em “muitos sítios arqueológicos que deveriam ser emblemas nacionais, mas estão ao abandono”, e pediu aos deputados um plano estratégico para o património arqueológico, e linhas de financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) na investigação de arqueologia em Portugal.

“Foi criado um grupo de trabalho [para a arqueologia] mas não sabemos de nada do que se fez. Sabemos que é composto por oito pessoas, sete do Ministério da Cultura e um da Ciência. Parece que a arqueologia é feita por funcionários”, criticou o dirigente, sobre o que considerou ser uma “política de casulo” da tutela, em que “não se sabe de nada”.

Preocupado com as coleções descobertas em campos arqueológicos, sobre as quais “também não se sabe como estão a ser conservadas, o seu acesso e estudo”, Luís Raposo incluiu ainda, no rol de problemas, “o despovoamento de quadros técnicos, a destruição impune de património, sem equipas regionais que permitam monitorizar o que se passa”.

Sobre o recurso ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a AAP disse ter apresentado propostas em defesa de investimento no património, “que geraria emprego e seria um contrato intergeracional” no país.

Também a Associação Portuguesa de Museologia (APOM), representada pelo presidente da direção, João Neto, sugeriu que “pelo menos 2%” das verbas do PRR sejam alocadas à cultura, apontando para “o diagnóstico da situação da cultura [que] está feito há muito tempo”.

“Temos de passar da teoria aos atos. Estamos todos a lamentar, mas pedimos pressão para que haja ação”, comentou, advogando uma descida do IVA em todos os serviços ligados aos serviços educativos, montagem de exposições, promoção de serviços culturais no mundo digital, criação de um único portal para o setor, e lançar um tema anual para a cultura.

João Neto mostrou-se convicto de que a pandemia “vai demorar a ser resolvida”, e, por isso, “é preciso dotar os museus com a capacidade tecnológica para estarem ligados ao público em geral e, em particular, o escolar”.

“Parece que a cultura não tem direito a recursos próprios, e não se compreende como isto acontece num país com a nossa longa história”, lamentou.

Na mesma linha, a presidente do ICOM Portugal, secção portuguesa do Conselho Internacional de Museus, Maria de Jesus Monge, defendeu 2% do PRR para a cultura, “um setor onde os museus sofrem de falta de investimento crónico há mais de uma década”.

Falou em vários casos de museus com “grandes dificuldades”, entre eles o Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, “com graves lacunas de segurança, climatização, e dramática falta de recursos humanos, como a maioria dos museus nacionais”.

A presidente do ICOM Portugal apresentou várias propostas de reanimação do setor, como linhas especificas de financiamento, criação de 5% de novos postos de trabalho na cultura, um cheque cultura para os jovens, uma linha especifica de finamento para recuperar património em territórios de baixa densidade populacional, recuperação de património cultural natural, incluir os museus públicos e privados nas metas de eficiência energética, qualificação das equipas dos museus e redes tecnológicas, modernização e oferta de ensino, digitalização dos museus, e reforço do Programa ProMuseus.

“Os museus têm cada vez menos autonomia e capacidade de resposta às necessidades e desafios”, lamentou, indicando que a nova lei dos museus relativa à autonomia “não avançou, com a tutela a justificar tudo com o impacto da pandemia, além do atraso da realização dos concursos” para as direções de museus e monumentos, em curso na segunda fase.

Um panorama muito difícil e de “abandono” foi descrito na intervenção da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação (BAD), pela presidente, Ana Alves Pereira, que recordou o papel importante destes espaços na “proximidade com as populações, com papel decisivo na coesão territorial, e preservação do património documental”.

A desatualização da legislação, o vazio legal na área das bibliotecas, a falta de recursos humanos, a falta de infraestruturas para conservar os documentos, foram alguns dos pontos críticos focados, “que a pandemia veio acentuar”, porque “as bibliotecas não foram consideradas serviços essenciais”.

Apenas a área da arquitetura pareceu estar excluída dos efeitos destrutivos da pandemia, porque, disse o presidente da Ordem dos Arquitetos (OA), arquiteto Gonçalo Byrne, a atividade da construção manteve-se, e os projetos continuam o seu curso.

No entanto, mostrou-se apreensivo com a “fórmula economicista e de grande urgência” que está a ser levada a cabo, e com o seu resultado final, “que pode conduzir a uma reabilitação desclassificada” do património edificado.

Ainda em nome da OA, o arquiteto Jorge Figueira pediu “maior reconhecimento para a estrutura cultural em redor da arquitetura, porque é um bem cultural e económico, lamentavelmente ausente no PRR”, no qual a ausência da cultura lhe pareceu “surpreendente”.

Já a Associação Acesso Cultura, associação sem fins lucrativos que promove a inclusão de público e profissionais da área, representada por Marco Paiva, defendeu a criação de estatuto do profissional da cultura, “com uma reflexão profunda para criar um rumo para um setor cultural muito diverso, nomeadamente com públicos em desvantagem de acesso cultural”.

“É preciso recuperar o setor do impacto da pandemia, clarificar medidas e assumir a cultura como um eixo estratégico para o país, uma lógica de proximidade entre as estruturas e os territórios. É fundamental passar da teoria à ação”, apelou.

As reações de vários deputados da comissão de Cultura às intervenções manifestaram-se concordantes com a alocação do valor de 2% no PRR ao setor: Filipa Roseta e Cláudia André (PSD) deram razão aos agentes ouvidos e recordaram que o Parlamento Europeu disse que haveria 2% para a cultura, acrescentando não perceber o que aconteceu em Portugal, com a ausência desse valor do documento.

“Foi uma falta de consideração do Governo pela cultura e pelos seus agentes. É preciso um plano de reanimação”, propuseram.

Do PS, a deputada Cristina Sousa disse: “É muito importante ouvir o setor, só com esta participação será possível ultrapassar os problemas que enfrenta. Estamos conscientes de que, apesar de todos os esforços e medidas tomadas, há ainda um longo caminho a fazer e o Partido Socialista está disponível para o diálogo. É preciso assegurar que ninguém fica para trás”.

A deputada Alexandra Vieira (BE) questionou o Governo sobre as ideias que tem para o país no setor da cultura, “onde o investimento tem tido uma tendência para o emagrecimento”, e “falta de visão de curto e médio prazo para o património”.

Por seu turno, a deputada Ana Mesquita (PCP) defendeu, mais do que medidas de urgência, um plano estruturado do Estado para intervir na cultura, e responder aos problemas falados pelas várias instituições.

“São precisas medidas urgentes, mas também estruturais. Temos de garantir uma linha de ação para os trabalhadores da cultura, e para que a situação não se repita, tendo em conta o grau de empobrecimento da cultura no país. Não nos podemos ficar pelas medidas de emergência, para que este nível de degradação não volte a acontecer”, sustentou a deputada comunista.

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