“Uma boa parte daqueles que se julgam os mais conhecedores, os mais sábios, sempre me olharam assim com aquele arzinho de doutor, eles no pedestal e eu sempre no chão – sempre gostei de pôr os pés no chão – e foi uma surpresa, um choque para alguns deles, mas ainda bem que foi assim, porque na verdade eu escrevo em português”, disse, em entrevista à agência Lusa, em Lisboa, onde se encontra a realizar um conjunto de atividades sobre a sua obra.
A autora reconheceu que nunca imaginou existirem tantas pessoas tão interessadas em ouvi-la e em ler o que escreveu e só lamenta não ter braços para “os abraçar a todos”, os que vivem em África, Portugal, Brasil e em outros países que não falam português.
O que mais a surpreendeu foi “a celebração popular” e até de pessoas que não sabem ler, “porque as pessoas sempre olharam para o Prémio Camões como uma coisa muito distante dos africanos, sobretudo das pessoas de raça negra”.
“Sou a primeira pessoa de raça negra, negra bantu, a receber o prémio”, disse, contando que “as pessoas sempre olharam para este prémio com uma distância”, como “o prémio dos outros”.
“Se [o vencedor] não é um branco, vai ser um mulato, mas negro e ainda por cima mulher…”, afirmou, referindo-se à forma como o galardão era visto.
E prosseguiu: “Agora, em todas as caminhadas, nós encontramos aqueles durões que acham que são os donos da língua portuguesa e são os donos da sabedoria”.
Paulina explica que, embora tenha estudado o português, que é a sua segunda língua, pertence a uma cultura bantu. “É lógico que a estrutura da língua portuguesa que eu falo vai ser uma mistura de duas culturas. E eu sempre defendi isto e muitas vezes os puristas da língua, moçambicanos, negros, académicos e alguns achavam que uma boa língua portuguesa tem que ser falada, mesmo à portuguesa”.
“E eu dizia: calma aí! E a estrutura da minha língua bantu, onde é que fica? A estética bantu, onde é que fica? Não vou deitar fora as minhas heranças. Eu sou produto da cultura bantu e sou produto desta cultura que veio com a Europa e que se impôs na minha terra. A língua portuguesa é minha e eu vou usá-la como eu quiser”, salientou.
Conta que “a língua portuguesa, que tem origens na Europa e que traz consigo a cultura da Europa”, está em África, onde “foi imposta”.
“Nós aceitamos porque é um instrumento muito útil e muito importante. Mas esta língua não penetra tão bem no nosso mundo. Isto é, podemos comunicar-nos, mas existem alguns aspetos da nossa essência, da nossa fauna, da nossa flora e dos nossos mares”.
A escritora considera que “a grande crítica que se faz aos escritores africanos, de língua portuguesa ou não, é que os africanos não sabem nomear as flores, só dizem as flores; não sabem nomear os pássaros, porque só dizem os pássaros dos passarinhos”.
Segundo a autora, isso deve-se ao facto de a flora tropical moçambicana ser diferente da flora europeia: “Cada língua, cada cultura, sabe nomear as suas flores e suas plantas”.
“Por vezes eu digo: Nós, como moçambicanos ou os africanos em geral, temos uma coisa muito boa, temos as nossas línguas maternas e depois aprendemos o português para nos comunicar com os outros. Depois aprendemos o francês, o inglês para trabalhar. Acabamos ficando poliglotas”.
Ou seja, “os africanos, em termos de línguas, têm um património por vezes maior do que o património de Portugal ou da Europa, porque quase todo o africano é obrigado a conhecer mais do que uma língua”.
Sobre os próximos temas da sua obra, Paulina promete insistir no que mais gosta: a vida e a existência.
“Eu acho que nós, como seres humanos, estamos deslocados da nossa própria humanidade”.
E dá o seu exemplo: “Eu sou africana, mas estou distante da África, apesar de estar a viver em África; é como se eu estivesse proibida ou fosse proibida por alguma lei de ser africana. Nasci num tempo em que não podia falar a minha própria língua. Estou a viver numa sociedade que olha para África como este lugar, não sei, de inferno ou inexistente. Estou a viver num mundo em que um africano não pode expressar a sua religiosidade e às vezes tem vergonha da sua própria raça, do seu cabelo e da sua maneira de ser. Este é o mundo que nós herdamos desses conflitos e dessas pirâmides que o mundo entende que deve construir para classificar seres humanos”.
É então que, “de vez em quando”, sente “uma vontade de contribuir para uma reflexão sobre tudo isso e tentar entender as razões pelas quais o mundo está tão desequilibrado”.
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