Peça "Nau, nau Maria" procura desmistificar Descobrimentos

Para a construção de “Nau, nau Maria”, que tem estreia marcada para o Cine-Teatro de Torre de Moncorvo, no distrito de Bragança, Alice Azevedo procurou relatos de viagens do tempo dos Descobrimentos que desmistifiquem personalidades e narrativas, tendo também em conta as 12 histórias da versão da “História-Trágico Marítima” do Plano Nacional de Leitura, cinco delas reescritas e readaptadas por António Sérgio.

Infante D. Henrique, por exemplo, surge no espetáculo como aquele que “inaugurou o comércio escravocrata em Portugal e talvez na Europa”, disse Alice Azevedo à Lusa. E o facto é suportado pelo relato em que se inspirou na “Crónica da descoberta e conquista da Guiné”, de Gomes Eannes de Azurara, redigida sob a direção científica do próprio Infante D. Henrique, no século XV.

“Nau, nau Maria” foi escrita a convite do diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, Pedro Penim, no âmbito do projeto Próxima Cena da “Odisseia Nacional”, que leva programação teatral a todo o país, durante este ano.

O projeto Próxima Cena procura levar teatro a zonas de baixa densidade populacional, com enfoque na adolescência, em particular nos alunos do ensino secundário e no programa de português para este nível de ensino.

A criadora, atriz, ativista trans, feminista e queer Alice Azevedo pensou então em criar um espetáculo sobre o que o não estava no programa do ensino secundário quando o frequentou, por considerar “pedagógico” dar o reverso da História e o que de humano dela se impõe.

Trabalhar com relatos de náufragos era “uma metáfora ótima para começar a fazer uma reflexão sobre o Portugal de hoje”, sublinhou a criadora à Lusa.

A intenção começa logo por ficar expressa no início da peça com os primeiros acordes da canção “Arrocachula”, de José Mário Branco.

“De naufrágio em naufrágio”, o espetáculo acabar por desfazer não apenas personalidades e mitos da História dos Descobrimentos, muitas vezes “referenciadas com um ‘apagador’ por cima daquilo que realmente se passou”, mas também remete o público para a atualidade política e social portuguesa.

Alice Azevedo assume ter dado ao espetáculo um lado “pedagógico, didático e panfletário, absolutamente”.

Construiu a dramaturgia como uma “anti-epopeia” assente numa estrutura semelhante aos dez cantos de “Os Lusíadas”.

Os dois atores em palco – Cire Ndiaye e João Nunes Monteiro — movem-se no cenário de uma ilha deserta onde se cruzam “fazendas” (riquezas) e bens tombados nos naufrágios, como madeiras, vinho ou farinha.

Depois há quadros mais conhecidos aos quais a criadora foi cerzindo outras histórias, como o encontro de Vasco da Gama com o sultão de Melinde, a quem o navegador português conta mitos e lendas da História de Portugal, de Afonso Henriques a Inês de Castro e ao Velho do Restelo, com quem supostamente se cruzou quando zarpou do Tejo, em direção à Índia.

A da descoberta e conquista da Guiné permite abordar “todo o esforço escravocrata do qual o Infante D. Henrique foi o grande impulsionador em Portugal”, indicou Alice Azevedo, afastando-se do relato dominante – “que passou o Bojador, as guerras do Norte de África, a conquista de Ceuta… sem que nos dissessem que foi ele que inaugurou o comércio escravocrata em Portugal e, talvez, na Europa”. E é possível fazê-lo a partir do relatos dos próprios, na época.

A versão dominante é que esta época dos Descobrimentos, nos séculos XV, XVI e XVII, foi “uma globalização, uma troca cultural entre povos”, continua Alice Azevedo. “Eu achava que tinha sido isso tudo e podia ter sido isso tudo, e por isso lindo, não foi”.

Com o espetáculo, a autora do texto espera também contribuir para uma reflexão sobre o “presente e o futuro que queremos construir”.

Sem uma linguagem hermética, ainda que com bastantes termos da época – como “vergas, enxárcias, gáveas, vigias ou mastaréus” -, Alice Azevedo construi um espetáculo que apresenta Portugal ainda como “um náufrago”.

Mais do que “o ‘clichê’ de falar mal de Portugal”, a Alice Azevedo interessa o “daqui para a frente”, o que exemplificou numa sucessão de metáforas: “Se vamos passar de náufragos, se vamos passar a calafetar bem o barco ou se vamos ver se as velas estão bem remendadas à saída do porto”, disse.

“Creio que ainda somos um náufrago, mas cada vez mais um náufrago que consegue com todos os mecanismos à sua disposição [como as personagens do espetáculo] construir a jangada possível, chegar ao porto possível e a partir daí conseguir fazer cada vez melhor”.

Na época, havia era preciso imprimir velocidade ao comércio da pimenta; hoje os comércios são outros, mas o pressuposto de fundo mantém-se, obervou.

Naquela altura, como é muitas vezes mencionada em falas da peça, muitos navios saíam dos portos sem terem condições, mal calafetados com “muito pouco escrúpulo” de oficiais, “como se não estivesse à mercê de calafates tanta fazenda [riqueza], e tantas vidas que se metiam nestas naus”, recorda a autora, citando documentos da época.

“Leio isto e penso que podia estar a ler uma crítica contemporânea a um edifício qualquer construído em 2022 sob a premissa de poupar dinheiro”, sustentou Alice Azevedo.

Ontem como hoje, tudo se mantém: “Já no século XVI se fazia mal e porcamente para se pouparem quatro cruzados, que é como quem diz meia dúzia de tostões”.

“Naufragar já naufragámos nós, há tanto, tanto tempo”, afirma o texto da peça de Alice Azevedo. “E cá seguimos náufragos, com saudades que são menos como cais de pedra e mais como naus de rocha”.

Pensado não apenas para público escolar, “Nau, nau Maria” terá representações sexta-feira e sábado em Torre de Moncorvo.

Será depois representado em Carrazeda de Ansiães (17 e 18 de março), Mirandela (24 e 25 de março), Fundão (21 e 22 de abril), Idanha-a-Nova (05 e 06 de maio), Miranda do Corvo (12 e 13 de maio), Mértola (06 e 07 de outubro), Grândola (13 e 14 de outubro), Borba (20 e 21 de outubro) e Castelo de Vide (27 e 28 de outubro).

Com texto de Alice Azevedo, que assina a dramaturgia com Cristina Carvalhal e Leonor Buescu, “Nau, nau Maria” é uma produção conjunta da estrutura Causas Comuns e do D. Maria II. Tem cenografia e figurinos de Daniela Cardante, design de iluminação de Carolina Caramelo, desenho de som de Isaac Veloso e Nuno Pinheiro, na assistência de encenação.

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