‘Perfil Perdido’. Peça de Marco Martins expõe violência do ato de educar

 

A obra nasceu da ideia de criar um espetáculo para a atriz Beatriz Batarda e o bailarino Romeu Runa, e da vontade de Marco Martins trabalhar o tema da “filiação e da figura do pai”, como o encenador contou, em entrevista à agência Lusa, no final de um ensaio de imprensa: “Porque sou pai e por saber que essa figura é também fundamental para a Beatriz e o Romeu, ainda que por motivos distintos”, explicou.

Partindo da representação da figura do pai, “enquanto elemento central da arte ocidental e da domesticidade enquanto estaleiro, os dois protagonistas percorrem a vida de várias personagens, outros eus, criando relações e cruzamentos inesperados”, que “não têm idade nem género ou corpo definido – transmutam-se entre si, criando mundos fugazes e fragmentados”, lê-se na folha de sala para a apresentação do espetáculo.

Escapando à lógica teatral de “dois meses de ensaios”, a que se sucedem as apresentações, o encenador seguiu um período de várias residências criativas, com os intérpretes, e o objetivo de, juntos, sob improvisação, e no apelo a memórias verdadeiras ou falsas, do que foi vivido ou fantasiado, por eles e por diferentes autores, encontrarem “um novo terreno, o que só é possível num longo processo”, num trabalho em permanente mutação, similar ao processo do projeto anterior “Provisional Figures”.

O resultado é um espetáculo para dois intérpretes e uma voz, um espetáculo ao longo do qual a figura e a autoridade do pai estão sempre presentes, como o tom áspero e severo do grito “Ei!”, que se ouve com frequência ao longo da peça, e ao som do qual os dois protagonistas se imobilizam, se voltam de costas para o público e baixam a cabeça.

Ao fundo do palco os atores encontram uma representação da figura paterna, sem que se veja o rosto do pai. Esta figura porém é uma constante na peça.

“‘Perfil Perdido’ alude um retrato a 3/4, em que o rosto não se vê mas é convocado, em que a atenção é focada naquilo que, não sendo explícito, é indiciado como fundamental. Assim parece acontecer muitas vezes no âmbito da família, imbrincado reduto do mais ancestral e problemático que há em nós, onde se joga em alta parada o (des)equilíbrio entre o indivíduo e o coletivo, entre o interesse pessoal e o bem comum”.

“A educação é sempre um ato violento”, afirma Marco Martins. “Esta ideia [de educação], corra bem ou corra mal, há de ser sempre violenta. Até porque nós nunca sabemos se existe certo ou errado na educação e nos valores que transmitimos”, enfatiza o realizador de “Alice” e “São Jorge”.

Daí que a ideia inicial tenha partido de uma “folha branca”, na qual a figura do pai “acha que pode imprimir os seus valores”, afirmou.

Num espetáculo em que o corpo, o movimento e a expressão física foram o centro dos primeiros ensaios, “Perfil Perdido” foi construído a partir de uma “colagem” de textos que se foram “apropriando dos atores“, e não o contrário, como é habitual, indicou Marco Martins.

Poetas, dramaturgos, romancistas, ensaístas, clássicos e contemporâneos, como Sylvia Plath, Franz Kafka, Édouard Louis, Shakespeare, Sófocles, Sophie Calle, Siri Hustvedt, Gonçalo M. Tavares, George Steiner e Slavoj Zizek são alguns dos autores dos textos ‘encaixados’ na partilha de experiências dos protagonistas, desta peça que assenta sempre “num jogo entre a verdade e a mentira”.

Textos em que todos os intervenientes, “de alguma forma, se reviam em memória de coisas que tinham de infância“, frisou o encenador. “E não é por acaso que são todos textos sobre a infância de cada um”, acrescentou.

E sobre “essa ideia de onde é que acaba a memória e começa a invenção, sendo que aqui são memórias deturpadas (…), e os textos não são pessoais”, frisou, por seu lado, Beatriz Batarda.

As duas personagens de infância, protagonizadas pela atriz e pelo bailarino, estão constantemente a ser repreendidas por uma voz, vinda de uma faixa de som retirada de um vídeo que circula ‘viralmente‘ pela internet.

Eles são duas personagens infantis que têm de ser disciplinadas: desde o início do espetáculo, a voz proíbe-os de beber sumos, de comer doces, ameaça aplicar outros castigos ainda por determinar.

É a partir dos textos que, de alguma forma, é possível “rever em memória coisas da infância“. E “à medida que ficamos mais velhos, vamos ficado mais próximos da infância“, sublinham as ideias que Marco Martins e os protagonistas deixam claro no espetáculo.

“E não é pelo facto de ser pai”, prossegue o encenador, “mas porque à medida que ficamos mais velhos vamos olhando para os nossos pais de uma forma diferente, e eles para nós”.

Sendo o pai o homem “que caminha à frente de rosto escondido”, como o define Beatriz Batarda (o que encaixa na definição da história da arte do tal “perfil perdido” que dá nome à peça, e do retrato a 3/4 em que o rosto não se vê, mas é convocado), ele está sempre a direcionar o olhar para os filhos.

Para Marco Martins, ele é assim a ideia de alguém de quem fazemos o retrato a partir de “um pequeno fragmento”: “Nós nunca conhecemos o todo da nossa família. Do pai só conhecemos um pequeno fragmento, assim como com os nossos filhos, acho que é igual”.

Esta noção de alteridade está sempre presente na peça e pressente-se na personagem interpretada por Beatriz Batarda, filha de artista plástico Eduardo Batarda.

A personagem acaba por retratar a dificuldade de qualquer criador construir uma identidade, sem que seja comparada com o pai. Admitindo falar em nome próprio, acaba, porém, por se referir a si mesmo como ficcionada.

Por isso, esta personagem feminina acaba também por espelhar a maior demora temporal que uma mulher criadora leva para perceber que é possível construir uma identidade “sem ter de se masculinizar”. “Isso levei muito tempo a perceber”, frisou.

Nessa noção de alteridade está também patente o peso que a figura do pai assume para um criador, admite Marco Martins.

Porque há “essa ideia de que nos vemos sempre através dos olhos do nosso pai”. “E não tem de ser uma figura violenta; não tem de ser uma relação tipificada como violenta”. Mas há a possibilidade de, “a determinada altura, um olhar condicionar para sempre a ideia como olhas para ti próprio”.

E “isso é outro dos princípios que estava no espetáculo. Não só a educação, mas a forma como olham para nós”.

É, afinal, o “Perfil Perdido”, conclui o encenador, sublinhando não estar interessado em saber se se trata de “um espetáculo de dança, teatro, ilusionismo, ou ‘stand-up comedy'”. “Nem é um espetáculo autobiográfico”, sublinha Beatriz Batarda.

“Perfil Perdido”, que devia sido apresentado em março, no S. Luiz, teve a estreia nacional adiada para este mês, por causa da pandemia. A estreia mundial ocorreu em novembro do ano passado, na Turquia, no âmbito da 23.ª edição do Festival de Teatro de Istambul.

A peça que chega agora ao S. Luiz resulta, contudo, de um trabalho ao qual o encenador e atores foram continuando no tempo. “Perfil Perdido” é um trabalho em constante mutação.

O espetáculo vai estar em cena na sala Luís Miguel Cintra até 20 de dezembro, com sessões de terça-feira a sexta, às 19:00, e aos sábados, domingos, e no feriado de dia 08, às 11:00.

A sonoplastia é de Tiago Cerqueira, a cenografia, de Fernando Ribeiro, o desenho de luz, de Nuno Meira e, o figurino, de Teresa Pavão.

“Perfil Perdido” tem produção conjunta do S. Luiz, do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, onde será representado a 14 e 15 maio de 2021, do Cineteatro Louletano (22 e 23 de maio), do Teatro Viriato, em Viseu (05 e 06 de junho), e do Teatro Carlos Alberto/Teatro Nacional S. João, no Porto (10 a 13 de junho).

 

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