"Preocupa-me a deturpação da arte em função do alcance nas redes sociais"

João Seilá é, nas palavras do músico, “filho do cansaço e da falta da imaginação”, mas a verdade é que criatividade e talento não lhe faltam. Começou a tocar violino aos cinco anos e aos 12, nas férias de verão, produziu e gravou nove músicas sozinho, através de um software que instalou. Em 2012, gravou o primeiro disco, onde foi responsável por “uma boa parte dos instrumentos”, toda a pré-produção e arranjos antes de entrar em estúdio.

Queria ter começado por tocar saxofone, mas a sua estatura não permitiu que esse instrumento fosse uma escolha. O músico revelou que inicialmente detestava ir às aulas até que vários instrumentos o cativaram e, atualmente, toca “quase tudo o que tenha cordas, piano e teclados diversos”, assim como bateria, mas nem sempre a música foi uma paixão.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, definiu-se como “um músico aposentado”, que agora escreve e produz para diversos artistas, após ter dedicado a infância, adolescência e início de vida adulta à música. Em 2014, problemas de saúde levaram-no a cancelar todos os concertos que tinha agendados para o verão, achando que se iria afastar apenas por esse período. Apesar de não terem sido apenas três meses – mas oito anos -, este ano voltará a fazer música com o intuito de escrever e produzir outros artistas “com uma vontade feroz de inovar” e deixar a sua marca.

Como surgiu o nome artístico?

Às vezes digo que me chamo ‘Seilá’, porque como nunca me lembro do nome de ninguém – o que é um erro imperdoável – assumi também não me lembrar do meu. Sou bom com caras, números de telefone e diversas informações completamente desinteressantes, mas sou péssimo com nomes. O meu é demasiado normal e nunca tive alcunhas, portanto, precisava de um nome artístico. Durante a semana em que estive a gravar as canções fui pensando e não me ocorria nada que achasse interessante. Naquela altura estava estudar as invasões francesas, na disciplina de História, e recordo-me de pensar em diversos nomes franceses. João Croissant passou-me pela cabeça, sim.

Neste exercício de ‘João Isto’, ‘João Aquilo’, já tinha dito centenas de palavras à frente de João, até que disse “sei lá” e aquilo não me pareceu muito mau. Juntei o “sei” com o “lá” para parecer uma coisa mais ‘queque’ e saiu o “Seilá”.

Que instrumentos toca? Com que idade começou?

Quando tinha cinco anos, a minha mãe obrigou-me a estudar música. Lá tive de escolher um instrumento. Era pequenino e queria tocar saxofone. Barítono. Riram-se de mim… Era impossível uma criança com 15 ou 20 quilos tocar saxofone, muito menos barítono. Fui obrigado a escolher um instrumento mais pequeno e compatível com o meu porte e comecei por tocar violino. Odiava a música e chorava baba e ranho sempre que a minha mãe me obrigava a ir às aulas.

Aos seis anos, mudei para guitarra clássica. Aos 11, comecei a tocar guitarra elétrica e, aos 12, vinguei-me da minha mãe quando já tocava em bares e era ela que ‘chorava’ quando eu, tão pequenino, chegava a casa dos concertos às três ou quatro da manhã. Entretanto, pelo caminho, fui desenvolvendo outros instrumentos, toco quase tudo o que tenha cordas, piano e teclados diversos e bateria ‘médio-mal’. No futuro, tenciono transformar-me num bom pianista, mas ainda estou longe disso.


© D.R.  

Quando começou a escrever e a compor?

Comecei muito cedo. Numa fase inicial compunha com base naquilo que já sabia tocar na guitarra, mais tarde já compunha o que me ecoava na cabeça, obrigando-me a descobrir na guitarra como tocar esses temas. Foi assim que me apaixonei por harmonia (os acordes). Na nossa cabeça tudo é possível, nos dedos nem sempre. 

Evoluí muito enquanto instrumentista a tentar reproduzir coisas que me vinham à cabeçaSe há algo que realmente me interessa é a composição e a produção. Nunca fui grande fã da vida de músico na estrada: viagens, palcos, noitadas, gritos e luzes. Tenho problemas de estômago e não sou de todo compatível com o Rock n’ Roll. Estudei composição e continuo ativamente a tentar acompanhar as tendências. 

Vivo num dilema porque sou um amante da escrita à moda antiga, mas odeio ouvir músicas antigas porque as gravações são fracas e raramente soam bem. A escrita e a produção são fascinantes, as repetições rítmicas e melódicas que nos fazem uma tatuagem na cabeça e aquelas frases de ‘caracácá’ que nos saem da boca. É incrível como as músicas antigas só funcionam com arranjos antigos e as músicas atuais só com arranjos modernos. Imagine-se os Beatles americanizados com instrumentais trap modernos e misturas sem as frequências médias. Os Beatles sem médios não tinham saído de Liverpool.

O que o inspira? 

Oiço de tudo. Como guitarrista, fui um fã acérrimo do rock enquanto durou. Entretanto, na música moderna o expectro de frequências médias saiu de cena e o rock efetivamente morreu enquanto corrente ‘mainstream’. É fácil compreender porquê – os médios tornam-se irritantes e ferem-nos os ouvidos. Por exemplo, eu adoro o tema ‘Get the Funk Out’ dos Extreme e atualmente já não o consigo ouvir. Imagino vezes sem conta essa música a tocar na minha cabeça, mas não suporto ouvi-la porque tem médios a mais, dá dores de cabeça e vontade de matar o gato. É óbvio que isto só acontece se ouvirmos alto. Acho que encontramos aqui uma hipótese científica para justificar os ‘moches’ nos concertos de rock. O problema são os médios. 

Quem são as suas referências?

Tenho muitas referências e muito díspares porque as aprecio por motivos diferentes. Adoro a produção de artistas modernos como o Post Malone ou o Ed Sheeran. Adoro a combinação entre letras e música nas canções dos Paul McCartney, Rui Veloso, John Lenon e Carlos Tê. Sou um fã daquela música brasileira ‘romanticó-azeiteira’ em que as letras são justamente aquilo que pensamos e não dizemos em diversas ocasiões. Adoro orquestrações complexas. Admiro muitos músicos de jazz e depois de tudo o que existe, há o Bill Evans. Bill Evans é a encarnação da natureza nas mãos de um pianista. Uma viagem numa harmonia ecológica utópica em que, se ouvirmos com atenção, conseguimos ouvir o som das árvores centenárias a nascer e o primeiro casal de dinossauros a namorar.

Quais as adversidades de gravar um disco? 

Ui. Todas. Do ponto de vista ‘técnico’ há diversos desafios. Há canções que merecem muita produção, efeitos especiais e explosões e há canções que só precisam de uma guitarrinha. Mesmo que a produção corra às mil maravilhas e seja a mais adequada à canção, pode tudo falhar mais tarde na mistura ou até mesmo na masterização.Uma canção pode ser muito boa, mas se a produção falhar, não tem hipótesesDo ponto de vista financeiro, gravar um disco é para muitos impossível e só existe uma oportunidade. Gravei por conta própria o meu primeiro e único disco a sério, em 2012 com a ajuda dos meus pais e de muitos concertos que fiz após ter participado no programa de televisão Ídolos. Há discos mais baratos que outros e este foi um daqueles discos caros, obviamente sem entrar em grandes loucuras. Apesar de ter gravado uma boa parte dos instrumentos e ter feito toda a pré-produção e arranjos antes de entrar em estúdio, contratei diversos músicos e foram semanas e semanas em estúdio. É um disco à moda antiga em que não há absolutamente nenhum elemento midi, foi tudo captado com microfones, há temas com seis guitarras, piano, hammond, secção de metais, um sem fim de segundas vozes, todos espalhados no stereo em simultâneo e eu, naquela altura sem experiência absolutamente nenhuma, a cantar em mono no centro. 

O que o levou a participar no programa Ídolos? 

Antes do Ídolos era guitarrista freelancer e tinha ido fazer um concerto com um determinado artista sem ensaios. Nesse concerto, eu e o baixista fizemos uma aposta e quem desse mais erros no concerto tinha que ir ao Ídolos tocar uma música do Tony Carreira. A guitarra tem seis cordas, o baixo quatro. É óbvio que perdi a aposta.

O que retira dessa experiência?

A resposta podia ser um livro, mas vou-me focar apenas numa perspetiva – a pancada psicológica que estes programas dão aos participantes. Sempre fui muito realista e soube reconhecer que o Ídolos, antes de ser um concurso de música, era um programa de televisão. Mas os concorrentes, e aqui falo com base na minha experiência da minha edição, de um dia para o outro deixam de ser ‘miúdos normais’ e acordam no dia seguinte a ser conhecidos, pessoas que marcam presença em programas televisivos, que recebem chamadas às tantas da noite de revistas ‘côr-de-rosa’, que são fotografados às escondidas na rua, que têm um grupo de 200 pessoas aos gritos a recebê-los no final das galas… Tudo isto aconteceu na minha edição. Há que notar que eu estive no Ídolos em 2012, há dez anos, numa altura em que o digital ainda não tinha esta expressão, não havia Instagram ou Tiktok e toda a gente via televisão. 

Por muito que um concorrente tenha os pés assentes na terra, há coisas que mudam de um dia para o outro, depressa demais e sem que dê tempo para assimilar o que está acontecerE isto pode ter, e eu sei que tem, pelo que senti e pelo que vi à minha volta, consequências psicológicas mais ou menos desagradáveis. Desengane-se quem acha que o problema é apenas o vislumbre ou o facto de os concorrentes se sentirem desamparados no final do programa. Para além da responsabilidade, ansiedade e stress associado ao ‘estar na televisão em direto’, o problema é a forma como se lida com a mudança imediata no quotidiano e com o excesso de atenção que se recebe naquele momento. Esta mudança demasiado repentina pode deturpar a forma como interpretamos várias coisas na vida e isso é, de facto, um risco que deve, no mínimo, ser ponderado. 

Para mim, o Ídolos foi o melhor ‘campo de férias’ onde alguma vez estive. Foram três meses fechado naquele ‘circuito hotel, estúdio, ensaios’ com amigos e música, sempre bem tratado pela equipa. Destaco a oportunidade de tocar com uma banda de músicos brilhantes e apenas tenho pena de não haver, nestes programas, generalizando, uma filosofia de otimização cuidada e mais empenhada do potencial dos concorrentes.

Acredita que é possível viver do mundo da música em Portugal?

Claro que é. Para mim, que não gosto da vida de estrada, enquanto artista estaria condenado. Os direitos de autor apesar de muito bem-vindos, não são nenhuma galinha de ovos de ouro e os artistas são completamente dependentes dos espetáculos ao vivo para subsistir. Há um fenómeno curioso em Portugal. O país é muito pequeno, se um artista fizer 150 concertos por ano, dois anos seguidos, nos três anos seguintes terá pouco trabalho porque os palcos não são muitos, assim como as festas e não faz sentido o mesmo artista tocar cinco vezes em Fátima num período de três anos. Isto obriga a uma gestão de carreira com períodos de presença e ausência para manter o equilíbrio.


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As coisas mudaram muito com o tempo. As vendas de discos já não têm grande expressão e os lucros das vendas digitais não chegam para a impressão em papel dos relatórios de reprodução das músicas… Mas descobriu-se que os artistas podem compensar essas perdas ao postar fotografias no Instagram. Irónico, mas compreensível. A única coisa que me preocupa é a deturpação da arte em função do alcance nas redes sociais com vista à monetização das publicações ou ao acesso a outras ferramentas. São criadas músicas e vídeos em que o conteúdo da canção ou do vídeo são secundários e o protagonista é um qualquer elemento chocante, obsceno ou qualquer outra coisa que provoque uma reação imediata. Entristece-me. Tem-se notado que este exercício é um caminho sem retorno em que muitas vezes, durante o processo, desaparece o motivo pelo qual se começou a ouvir música e a fazê-la. 

Quando o marketing é a coluna vertebral de uma canção, aos meus olhos, deixa de ser arte e passa a ser um engodoQue pode perfeitamente existir mas que não deve ser, de forma nenhuma, misturado ou confundido com arte. Há discos que não ‘podem’ ser vendidos ao lado de outros discos.

Quais os obstáculos que os músicos enfrentam? 

Eu acho que o maior inimigo dos músicos continuam a ser os próprios músicos. No setor que melhor conheço, uma empresa pode passar à frente de outra se tiver um produto, um serviço ou um preço melhor e a concorrência obriga a trabalhar o melhor produto com o melhor serviço ao melhor preço. No caso da música, para além do preço, da qualidade do artista, do espetáculo ou das canções, que são sempre diferentes, existe um fator ‘tchanam’ que pode vencer por ser ridículo ou mediático. 

Um dos obstáculos que identifico em Portugal, não para os músicos mas para a música, é a inexistência e o desrespeito por uma indústria que mal existeApesar da evolução notória nos últimos anos, sinto ainda uma discriminação dos intérpretes face aos artistas que escrevem as suas próprias músicas e isto leva à existência de uma falsa verdade de que os artistas têm de escrever as suas próprias canções. Não seria tão melhor se as músicas fossem escritas por quem sabe escrever, produzidas por quem sabe produzir, cantadas por quem sabe cantar e dar um bom espetáculo? 


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Como pensa que se podem combater estes obstáculos? 

Existe muito pouco espaço para os autores e uma filosofia contraproducente na cabeça de muitos cantores que os leva a não aceitar canções de fora. As próprias editoras apoiam-se nos artistas com carreiras vincadas para escreverem temas para os artistas novos que vão surgindo. Criando, desta forma, versões beta de estilos de canção que já conhecemos e conseguimos facilmente identificar quem escreveu a música, com instrumentais muitas vezes tão semelhantes na sua morfologia que, quando passa na rádio, antes de entrar a voz temos a certeza de que é de um certo cantor. Sou um capitalista assumido e aceito isto, mas é um tiro no pé que os novos artistas dão. 

No âmbito de melhorar as condições dos músicos e dos artistas, de repor alguma meritocracia, acredito que fosse pertinente a criação de uma associação ‘editora-label-difusora’, criada como uma cooperativa de muitos músicos que teria, acima de tudo, a missão de filtrar de forma democrática o que merece ser ouvido. É óbvio que o público já faz esta atividade de filtrar o que é bom do que não é – prova disso é a quantidade de artistas que rádios, editoras e outros meios nos tentam impingir e que, no fim do dia, não vendem espetáculos porque o público não gosta nem quer. A diferença é que o público só pode ouvir e avaliar o que conhece e com uma associação desta natureza, para além de poder ter ação sobre outros assuntos mais complexos – como a existência abundante de contratos lesivos para os artistas ou questões dúbias relacionadas com publishing – evitava-se que temas como o ‘Anda comigo ver os aviões’, lançado em 2009, só tivesse sucesso três anos depois, como foi o caso, apenas em 2012 ficou conhecido quando um concorrente do Ídolos cantou o tema no casting.

O que podemos esperar do João Seilá no futuro?

A minha prioridade profissional não só não é mediática como até acho que é incompatível com os holofotes da música. Correndo bem, não se saberá grande coisa de mim. Tenciono escrever e produzir outros artistas que é o que mais gosto de fazer e é um trabalho invisível. É provável que grave alguns temas e que os vá publicando nas plataformas habituais, Spotify e Youtube.

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