Produtores portugueses "são uns brincalhões" e ignoram diversidade

“Eu diria que os produtores da ficção nacional portuguesa, quer do cinema, quer da televisão, são uns brincalhões. É isto que posso dizer”, disse o ator, esperando não ferir suscetibilidades, quando questionado sobre o trabalho para atores negros em Portugal.

Welket Bungué disse que já houve manifestações de indignação de artistas, que são sempre chamados a interpretar personagens “estereotipadas em situações altamente estereotipadas e estigmatizadas”.

“Está diferente o panorama, mas não mudou muito. Não é por acaso que agora saiu o filme ‘Soul’ e eles cometeram um erro crasso de fazer um ‘casting’ totalmente branco e não ‘miscegenizaram’ de todo. É vergonhoso, não só para mim como artista, como para alguém que faça parte de uma indústria não só nacional, mas também que representa Portugal internacionalmente”, afirmou o ator à Lusa.

Uma petição assinada por mais de 17 mil pessoas, em dez dias, foi lançada para exigir uma nova adaptação em português da recente produção da Disney, “Soul – Uma História com Alma”, filme de animação sobre jazz e a comunidade afroamericana nos Estados Unidos, que, na versão portuguesa, não inclui um ator negro para dar voz aos personagens negros.

“Deixa muito a desejar que nós não tenhamos tido ainda a coragem de assumir que Portugal é um país ‘miscelanizado’, diversificado no sentido étnico e cultural, e essa diversidade tem de ter respaldo pragmático nas produções do audiovisual e de ficção nacional”, afirmou Welket Bungué.

O ator afirmou que é falso que as produções com elencos que representam essa mistura, essa ‘miscelanização’, não vendem. Para Bunqué, esta ideia é defendida apenas por “aqueles que têm interesse em manter as estruturas de poder e de falsa representatividade” que se vive em Portugal.

Um cenário que “nós, como cidadãos portugueses, não podemos continuar” a sustentar, defendeu.

Welket Bungué sublinhou “a grande mudança” que tem havido em Portugal, com a elevação de “vozes insubmissas”, “cada vez mais insubmissas”, “criando coletivos que se afastam desse hiperconsumo da ‘branquitude’ estabelecida”.

“Quando falo disto, falo de cultura. E a cultura está ligada inevitavelmente às pessoas, e as pessoas estão ligadas àquilo em que acreditam. E aquilo em que acreditam tem muito a ver com a sua realidade (…). E a realidade de onde provêm pode ser diversa. E essa diversidade pode ter sobretudo a ver com a sua etnicidade. E a etnicidade poderá ter a ver com aquilo a que nós, leigamente, chamamos cor. E a cor traz vida. E o nosso país tem obrigação de trazer este manancial humano não só para a ficção [audiovisual] que produz”, mas também para toda a estrutura social, política, administrativa e de serviço público, defende.

Bunqué recorda as manifestações de junho do ano passado, sob a palavra de ordem “Black lives matter”, e as de solidariedade, que se sucederam ao homicídio do ator negro Bruno Candé, em julho, como reflexos da diversidade e da fraternidade existentes na sociedade portuguesa. Uma realidade que, defende, os produtores têm de entender e fazer refletir.

“Os nossos produtores façam o favor de perceber que este é um país colorido, riquíssimo do ponto de vista cultural, e que eles não podem continuar a impor estrategicamente um ‘statement’ daquilo que é cultura, porque isso não serve à grande maioria”, afirmou.

O ator e realizador luso-guineense Welket Bungué nasceu na Guiné-Bissau, em 1988, cresceu em Portugal, onde se licenciou em teatro, estudou também no Brasil e recentemente mudou-se para Berlim. É membro da Academia Portuguesa de Cinema e da Academia Alemã.

Em novembro, foi distinguido no Festival Internacional de Cinema de Estocolmo com o Cavalo de Bronze, o prémio de melhor ator principal pela sua interpretação no filme “Berlin Alexanderpiatz”, de Burhan Qurbani, um desempenho que o destacou no Festival de Cinema de Berlim, em 2020, e pelo qual esteve igualmente nomeado para o prémio de melhor ator da Academia Alemã de Cinema, em abril do ano passado.

Em outubro, Bungué abriu a 7.ª Mostra Internacional de Cinema Anti-Racista (MICAR), no Porto, com a curta-metragem “Eu não sou Pilatus” e, em agosto, venceu o festival internacional de videoarte Fuso, com “Metalheart”, que o júri destacou pela sua “qualidade poética marcadamente crua”.

Bungué estreou ainda, em setembro, em Lisboa, no Teatro do Bairro Alto, o projeto “Mudança”, desenvolvido com a socióloga e deputada Joacine Katar Moreira, sobre questões de preservação da democracia, da integridade da saúde pública e de individualidade, impostas pela pandemia, numa abordagem em que contou com a imagem do artista Nú Barreto, a música de Mû Mbana e referências ao povo do arquipélago dos Bijagós, na Guiné-Bissau.

O ator trabalha em representação há mais de uma década. Participou em séries televisivas, como “Equador”, “Morangos com açúcar” e “Os filhos do rock”, e entrou em filmes como “Joaquim”, do brasileiro Marcelo Gomes, e nas produções portuguesas “Cartas da Guerra”, de Ivo Ferreira, e “Quarta Divisão”, de Joaquim Leitão.

É ainda autor e realizador de várias curtas-metragens, entre as quais “Corre que pode, dança quem aguenta”, “Arriaga! e “Ex Exploiter Expropriator”.

O Bissau Film Meeting, onde antestreia na sexta-feira o seu novo filme, “Cacheu Cuntum”, é organizado em conjunto pela produtora KalmaSoul Guiné-Bissau e o Centro Cultural Brasileiro, em Bissau.

O filme põe em confronto a memória do passado da escravatura “com aquilo que pode ser a Guiné de amanhã”, como o realizador disse à Lusa.

Para este ano, Welket Bungué tem previsto a montagem de um documentário de ficção, denominado “Bissalanca”, um outro que falará de aprisionamento e libertação e, em breve, vai regressar à Europa para começar a filmar uma longa-metragem belga.

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