Rui Catalão desfaz tabu da "ausência parental" em nova peça na Moita

A peça, com seis monólogos e uma leitura conjunta, dá continuidade a uma longa série de espetáculos dedicados à diáspora africana que Rui Catalão tem vindo a desenvolver desde 2016, quando apresentou “E Agora Nós” com cinco habitantes do Vale da Amoreira, no concelho da Moita, distrito de Setúbal.

Do contacto com esta comunidade e da criação de alguns solos com jovens da comunidade, o ator, dramaturgo e encenador foi-se dando conta de que, ao longo do início da vida dos intérpretes, tinham passado largos períodos sem a presença do pai, da mãe, ou até de ambos.

“Apercebi-me que esta experiência era algo comum a 80 a 90% das crianças e jovens nascidos, ou com famílias originárias de Moçambique, Guiné ou Cabo Verde, e que muitas das dificuldades dos seus percursos de vida e de integração na sociedade estava bastante relacionado com a falta de uma vida familiar estável”, relatou, em declarações à Lusa.

Catalão quis aprofundar o tema e ir à procura das histórias pessoais: “Não me interessavam tanto as estatísticas, que são muito indicativas desta ligação entre ausência parental e percurso de vida, com motivos múltiplos”.

A evidência do fenómeno confrontou-o novamente, quando, como professor, durante uma aula numa escola secundária em Lisboa uma aluna apresentou um trabalho ao qual deu exatamente o título “Abandono parental”.

“A expressão foi mesmo dela, e assim que disse a frase começou a chorar. Outros dois rapazes da aula taparam a cara com os braços e também choraram. A situação causou uma grande comoção na turma e a reação foi violenta, porque pensaram que tinha sido eu a sugerir o tema, e não tinha”, relatou o ator à Lusa.

Naquele momento, percebeu que estava perante “um tema quase tabu, que não é muito falado nem formalmente nem informalmente”.

“Também não é muito estudado, nem falado na vida pública, ou nas notícias, mas que determina muito a vida destas comunidades”, sublinhou, acrescentando que foi um “momento decisivo” para avançar com um projeto artístico.

No entanto, ao contrário do procedimento habitual do seu processo criativo, que consiste em retirar as histórias contadas pelos intérpretes com os quais trabalha, optou por contratar um jornalista guineense, residente há muitos anos em Portugal, com uma experiência de vida semelhante, para recolher histórias pessoais de quem vive ou já viveu no Vale da Amoreira.

A partir dessas entrevistas, com histórias captadas por Madiu Furtado, criou a dramaturgia para “Ao Abrigo Da Distância”.

“Nós deixamo-nos muito influenciar pelas histórias de superação das dificuldades, e há alguns desses casos, realmente, mas são exceções. Claro que são muito inspiradoras essas histórias de sucesso, pela dedicação e esforço, e um pouco de sorte. Mas, na maior parte dos casos, a norma é que uma criança que nasce num contexto de instabilidade familiar vai ter muitos problemas no seu crescimento e adaptação à vida adulta, ainda mais num quadro de uma cultura diferente”, sustentou o encenador.

Rui Catalão fez audições para encontrar os intérpretes da nova peça e acabou por convidar Dennis Correia, Inês Corino, Luís Mucauro e Natacha Campos, contando ainda com pequenas intervenções do dramaturgo como ator.

São sete histórias contadas na primeira pessoa, em monólogo e uma delas é contada a cinco vozes. Os textos são lidos no telemóvel, um elemento tecnológico de comunicação “provocador” que o encenador decidiu introduzir na peça para abordar também a distância, o desprendimento e a vivência em “mundos paralelos”, mesmo quando a família está reunida no mesmo espaço.

“Agora quando olho para trás e vou ver os textos, em todas as peças que tenho feito na Moita, o tema da ausência familiar está ali subjacente, mas esta é a primeira vez em que o abordo diretamente”, conclui.

“Medo a Caminho”, com Luís Mucauro, “Adriano Já Não Mora Aqui”, com Adriano Diouf, “A Rapariga Mandjako”, com Joãozinho da Costa, e o espetáculo coletivo “Último Slow”, são alguns dos seus trabalhos mais recentes.

Com autoria e encenação de Rui Catalão, que também assina a dramaturgia, a partir de entrevistas realizadas por Madiu Furtado, “Ao Abrigo Da Distância” teve como assistente de ensaios e figurinos Joãozinho da Costa e tem luzes de João Chicó, numa produção das Produções Independentes, com coprodução da Câmara Municipal da Moita/Centro de Experimentação Artística e Festival Todos.

A peça estreia-se hoje, às 21:00, no Centro de Experimentação Artística, no Vale da Amoreira (zona exterior), e volta ao mesmo espaço no sábado. Será também apresentada no Festival Todos, em Lisboa, em setembro.

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