"Somos um paradoxo, não há nenhum país tão paradoxal como nós"

“Há aqui uma ideia que gosto muito, sempre, que é a ideia da falha. E, de alguma maneira, de uma exposição em que a falha esteja implícita”, assevera Luís Osório, em conversa com o Notícias ao Minuto sobre um dos capítulos do seu novo livro, ‘Ficheiros Secretos — Histórias Nunca Contadas da Política e da Sociedade Portuguesas‘, lançado este mês de maio.

Através do relato de conversas mantidas com algumas das personalidades mais importantes do país, o jornalista e escritor entreabre a porta a alguns momentos da História portuguesa e, também, a outros olhares sobre os seus protagonistas.

São contadas histórias do âmbito da política, como o último encontro entre Álvaro Cunhal e Mário Soares, antes do 25 de Abril, um incidente com o general Ramalho Eanes na campanha de 1976, ou a fundação do Partido Socialista, e também do âmbito social, envolvendo Amália Rodrigues, José Saramago ou Eduardo Lourenço.

Em quase todos os textos, assegura Luís Osório, “o detalhe, a pequena história, o pormenor define a nossa leitura sobre determinados personagens, determinadas pessoas e determinados acontecimentos”.

O que o levou a reunir e publicar estas histórias? Era algo que já tinha planeado ou foi inspirado por algum acontecimento?

Eu tinha estas histórias, mas não desta forma. Reescrevi praticamente todos os textos para que fizessem sentido numa obra que tinha que ter coerência. Reescrevi com esse sentido e também por um segundo motivo: para mim era muito importante que estas histórias pudessem ser lidas agora e pudessem ser lidas daqui a 20 anos, portanto, que se tornassem intemporais. Em terceiro lugar, também, mesmo sendo histórias reais, quis que pudessem ser lidas quase como um conto, com uma narrativa que é normalmente utilizada nas ficções. Quis essa ligação entre dois universos que teoricamente são incompatíveis, a ficção e a escrita jornalística. 

Aquilo que me leva a editar e a publicar os ‘Ficheiros Secretos’ tem muito que ver também com uma série de conversas com o meu editor, com o Rui Couceiro, que achou que este era o livro fundamental nesta altura e, portanto, avançámos. Havia outras ideias, outras hipóteses, este tinha a vantagem de ser um conceito do qual eu partia já com várias histórias e que, no fundo, são um bocadinho a consequência de 20 anos de jornalismo, em que tive o privilégio e a oportunidade de conhecer muitas figuras que fazem parte da nossa história.

Cada vez mais, oferecemos às pessoas aquilo que não as desconforta, que não as questiona. As pessoas, cada vez mais — e não me excluo disso —, só aderem àquilo que já sabem, àquilo que não as retira daquilo que veem e gostam. A literatura e o bom jornalismo é, precisamente, o que faz o contrário

É notório, ao longo do livro, que teve acesso privilegiado a pessoas com muita importância na sociedade portuguesa.

É isso. Mas também dou muita importância às pequenas histórias, aos pequenos pormenores, ao detalhe. Muitas vezes o detalhe, a pequena história, o pormenor define a nossa leitura sobre determinados personagens, determinadas pessoas e determinados acontecimentos, também. Foi esta soma de coisas que me levaram a avançar para estes ‘Ficheiros Secretos’.

Muitas destas entradas têm como fio condutor a ambivalência dos seus protagonistas, uma tentativa de compreensão do humano que faz o político, o líder, a personalidade. É casual, é uma urgência dos tempos que correm ou uma urgência do Luís Osório?

São as duas coisas. Quando se escreve um livro a relação passa a ser a dois, entre quem escreve e quem lê. E aqui até é mais do que isso, é entre quem escreve, quem lê e os protagonistas, pelo menos, os que estão vivos. Há uma tentativa de coerência daquilo que é o meu percurso, tanto no jornalismo como na autoria de livros. Este é nono livro e em todos eles, mesmo aqueles que menos ligação têm com a ideia de jornalismo, existe essa ambiguidade, essa ambivalência. Essa ideia de não oferecer a quem lê um conforto total, de começar a ler alguma coisa e não sair das suas certezas, das suas convicções. De não ser provocado. Cada vez mais, oferecemos às pessoas aquilo que não as desconforta, que não as questiona. As pessoas, cada vez mais — e não me excluo disso —, só aderem àquilo que já sabem, àquilo que não as retira daquilo que veem e gostam. A literatura e o bom jornalismo é, precisamente, o que faz o contrário.

Acredito muito que as pessoas têm várias camadas, todos nós temos várias camadas. Uma camada de superfície, essencial, que nos faz oferecer-nos aos outros e recebermos dos outros, mas também de uma zona mais de profundidade, que nos define para lá dos outros. É esse compromisso entre uma coisa e outra que define as pessoas, todas elas, desde a pessoa que encontrei no supermercado até às figuras que marcam o nosso tempo.

Temos ali um homem que é primeiro-ministro e que, naquele momento, me conta uma série de coisas que são importantes para o definir, mas que não estava feliz 

O que escreve no “deserto de António Guterres”, por exemplo, é bastante pessoal. Há algum sentimento de expiação naquele texto?

Há aqui uma ideia que gosto muito, sempre, que é a ideia da falha. E, de alguma maneira, de uma exposição em que a falha esteja implícita — ou explícita, mesmo. Tenho uma adesão imediata aos vencidos, não tenho uma adesão muito grande aos vencedores, os vencedores não me interessam muito. Objetivamente, um homem como o António Guterres, se olharmos para aquilo que é normal de valorizar as pessoas, é um vencedor. Chega a secretário-geral das Nações Unidas e contribui para que o mundo mude ou não, é alguém que é um vencedor. No entanto, o António Guterres que eu conheci e que chega a primeiro-ministro, é um homem que tem para si próprio uma ideia de combate diário e o combate diário trava-se sempre no deserto. Isso para ele é muito importante, é esse deserto que conta, é o caminho que nos define, a forma como nós percorremos o deserto. 

Tive várias conversas com o António Guterres, mas essa conversa aconteceu nos últimos tempos como primeiro-ministro, estávamos a almoçar em São Bento e ele estava extraordinariamente cansado. A primeira mulher dele tinha morrido. Ele, basicamente, estava numa fase de questionamento, do que é que fazia sentido na vida dele. Esse capítulo do António Guterres é um capítulo diferente dos outros, e é um capítulo muito centrado num homem, mas um homem que nos diz que a vida é feita de falhas. E é um ‘ficheiro secreto’ também sobre mim próprio, em que há um efeito de espelho, mas que só o fiz porque o jogo com o leitor é um jogo em que me parecia que fazia sentido expor-me — que parece uma ousadia, quem sou eu para me estar a colocar em efeito espelho com o António Guterres? Mas faço-o porque, nesse jogo com o leitor, coloco-me do lado do leitor e desafio o leitor a colocar-se do meu lado e convido-o para esse passeio no deserto.

É um compromisso de honestidade em relação à história?

Claro, é uma expiação, como disse. Mas uma expiação que não tem que ver com os erros cometidos ao longo da vida — a vida é feita disso, de falhas. Quando falo de mim próprio, nesse capítulo, estou a desafiar o leitor a pensar sobre si próprio, sobre as suas próprias falhas, e, sobretudo, a relativizar esta sede que nós temos de ser aceites. Pequenas e grandes ambições que temos e que, por vezes, não valem coisa nenhuma. Temos ali um homem que é primeiro-ministro e que, naquele momento, me conta uma série de coisas que são importantes para o definir, mas que não estava feliz.

Notícias ao Minuto ‘Ficheiros Secretos’ é o nono livro da autoria do jornalista Luís Osório© José Lorvão  

O relato de algumas conversas com Ramalho Eanes é interessante, revelador de uma pessoa bem-humorada e desprovida de ego. As conversas que manteve com o antigo PR reforçam a humildade e a abnegação que vimos na entrevista à RTP no ano passado?

O livro tem várias camadas. Tem a camada que existe para quem ainda não leu, que também tem que ver com a comunicação do livro: ‘Saiba isto, saiba aquilo…’ Em alguns casos, cada uma dessas perguntas que são lançadas acabam por ser menos importantes do que algumas coisas que se leem em cada um dos capítulos. Em relação ao general Ramalho Eanes, é uma das figuras mais respeitadas hoje e nem sempre foi assim — houve um momento de grande crispação, mas depois o tempo faz o que é suposto fazer, ele é hoje uma referência do país.

Julgo que estas histórias, divididas entre dois capítulos, ajudam a compreender melhor aquilo que é a parte menos conhecida de Ramalho Eanes e a perceber como ele chega a este momento da vida com um despojamento muito grande em relação às coisas, àquilo que é superficial. Ele é um homem com um grande sentido de humor e isso sabe-se, mas sabe-se pouco. A ideia que se tem é de um general, circunspecto, sempre fechado. Aquele pormenor em 1976, na campanha eleitoral, é delicioso. E é uma história que nos faz pensar nos tempos de hoje, na agressividade crescente nas redes sociais. Aquilo que realmente se nota é que, agora como em 1976, em relação àquele jovem que confronta o Ramalho Eanes, as pessoas querem é poder ser ouvidas.

Somos um paradoxo, não há nenhum país tão paradoxal como nós (…) Esta soma de paradoxos fez-nos este país extraordinário, que nasceu para morrer rapidamente, mas que sobreviveu. Algum segredo teremos, certamente 

Uma das suas últimas histórias é sobre Eduardo Lourenço, escrita antes da sua partida, parece-me. 

Sim, foi. Escrita e reescrita antes da sua partida.

O Eduardo Lourenço notabilizou-se na análise da maneira de ser portuguesa, que o Luís descreve muitas vezes como profundamente paradoxal. Foi uma inspiração?

É alguém que, necessariamente, teria de ser uma inspiração para quem escreve muitas vezes e pensa há muitos anos, de uma maneira desgarrada, mas muito presente, no que é isto de ser português. E o que é que verdadeiramente nos distingue e há muitas coisas que nos distinguem. O Eduardo Lourenço é alguém cuja passagem por cá foi uma passagem que se definiu numa palavra: pensar. Ou escavar. Era um arqueólogo. Era alguém que viveu em função de uma escavação profunda que fez em si próprio e em todos os autores. Ao escavar sobre a obra do Pessoa, sobre Camões, sobre os grandes escritores do século XX, ele está a escavar em si próprio e a procurar razões para estarmos aqui e sermos únicos. 

Somos um paradoxo, não há nenhum país tão paradoxal como nós. Repare, somos extraordinariamente generosos e extraordinariamente egoístas, somos um país com um sol extraordinário, com uma luz incrível, mas somos também o país que inventou a única música onde não se dança, que é o fado. Esta soma de paradoxos fez-nos este país extraordinário, que nasceu para morrer rapidamente, mas que sobreviveu. Algum segredo teremos, certamente.

Grande parte das nossas grandes personalidades alicerçam-se no sofrimento

Há algum ‘ficheiro secreto’ que tenha ficado de fora por poder ser lido de forma injusta, tendo em conta a distância temporal, ou porque, simplesmente, não podia contar?

Não, eu coloquei a hipótese de termos ‘Ficheiros Secretos’ apenas com pessoas que estão no ativo. E, eventualmente, pode colocar-se essa hipótese, porque há algumas histórias que ainda não estão escritas e que são interessantes. Ficaram algumas de fora, várias, muitas, mas nenhuma por achar que não devia. O meu critério foi mesmo algum alinhamento de temas, em dividir em três espaços, três momentos — o livro é dividido em três partes. 

Há aqui uma base que me parece interessante e por isso juntei estas histórias, outras ficaram de fora porque não tinham este lado, de que grande parte das nossas grandes personalidades alicerçam-se no sofrimento. Portanto, sem o capital do sofrimento, sem aquilo que viveram, em determinadas alturas da vida, não se teriam cumprido e, provavelmente, não os teríamos conhecido. Há três ou quatro histórias que conto e que são coerentes desse ponto de vista, como com o José Saramago, o próprio Eduardo Lourenço, o Eugénio de Andrade, o Álvaro Siza Vieira, e ainda mais.

Este é um livro cheio de pequenos desequilíbrios, que não é uma coisa má, necessariamente, é mesmo o que a vida nos propõe. E resta o que fazemos quando nos desequilibramos, é isso que define. Há histórias que conto ali em que isso está muito presente: a forma como nos equilibramos depois de um desequilíbrio profundo define a qualidade do caminho, como no tal deserto do António Guterres.

É possível daqui a uns tempos fazer um livro sobre momentos similares na atmosfera política e social atual?

Acho que sim. É um livro mais difícil esse, porque existe uma contaminação, que é a atualidade. Seria um bom desafio, ainda que não seja o meu próximo livro.

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