Carmen Dolores, uma das mais inconfundíveis presenças do teatro português

Para a atriz, a importância estava nas personagens, na “ternura muito grande” que nutria por elas e, por isso, tinha sempre receio de as repetir, de as atraiçoar, a elas e ao público, como disse em entrevista à agência Lusa, em 2005, quando pôs fim à carreira, com a interpretação de ‘Copenhaga‘, de Michael Frayn, no Teatro Aberto, em Lisboa.

“Cada vez quero menos fazer teatro, porque isso me dá uma angústia muito grande”, disse então a atriz, garantindo que a decisão nada tinha a ver com o público, que sempre a tratara com “grande carinho”, e que a reconhecia na rua pela voz.

O objetivo da atriz era diverso, passava pela sua timidez e pela preocupação constante de “não parecer repetir a personagem anterior”. Mas também pela vontade de sair de cena para “se poupar e viver ainda uns anos razoavelmente”, para continuar a aprender, a aperfeiçoar-se, a manter-se a par do mundo e a escrever memórias.

Assim fez. A carreira de 60 anos deu origem a três livros, e a sua voz manteve-se inconfundível, como destacou o escritor Fernando Dacosta, na apresentação do terceiro e último volume, ‘Vozes Dentro de Mim’ (2018): “A voz, ex-líbris da identidade que a definiu, tornou-a referência na comunicação em língua portuguesa, ao serviço da grande literatura, que [divulgou] encantatoriamente“.

Carmen Dolores Cohen Sarmento Veres nasceu em Lisboa, em 22 de abril de 1924, e estreou-se aos 14 anos, a dizer poesia, na antiga Rádio Sonora, com o irmão, o ator António Sarmento. Foi em 19 de outubro de 1938, como recordou à agência Lusa, data que apontou como da sua “verdadeira estreia”.

A chegada aos palcos só aconteceria sete anos mais tarde, em 1945, com a Companhia Os Comediantes de Lisboa, residente no Teatro da Trindade, integrada no elenco da peça ‘Electra, a mensageira dos deuses’, de Jean Giraudoux, encenada por Francisco Ribeiro (Ribeirinho).

Estava “calmíssima“, nesse dia, como recordou à Lusa, em 2005. “Costumo dizer que nunca estive tão calma. Estava calmíssima e [isso] era inconsciência porque, nessa altura, ainda não tinha a certeza de [querer] seguir uma carreira de teatro”, enfatizou.

A dúvida estava instalada entre o teatro e o cinema, onde se “estreou” em 1943, pela mão de António Lopes Ribeiro, a interpretar Teresa, do “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco, a que se seguiu ‘Um homem às direitas’, de Jorge Brum do Canto, em 1944, que lhe valeu o primeiro prémio de interpretação. Em 1945, de novo com Lopes Ribeiro, seria a vez da comédia, com ‘A vizinha do lado’.

A carreira inicial, no cinema, contou ainda com desempenhos em ‘Camões’ (1946), de Leitão de Barros, e em ‘A garça e a serpente’ (1952), de Arthur Duarte. Mas só nas décadas de 1970/1980 voltaria ao grande ecrã, com realizadores como António de Macedo, em ‘O princípio da sabedoria’ (1976), e José Fonseca e Costa, em ‘A balada da praia dos cães’ (1986) e ‘A mulher do próximo’ (1987).

Para Carmen Dolores, o essencial estava no teatro, estava no palco.

Quando chegou ao Teatro da Trindade, em 1945, era já uma presença conhecida. Depois, seguir-se-iam oito anos no Teatro Nacional D. Maria II, onde entrou em perto de duas dezenas de produções, como ‘Sonho de uma noite de verão’, de William Shakespeare, ‘Casaco de fogo’, de Romeu Correia, ‘Alguém terá de morrer’, de Luiz Francisco Rebello.

Na sala do Rossio, em Lisboa, então concessionada à Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro, cumpriu a primeira etapa de um percurso de 60 anos que viria a passar por quase todos os palcos portugueses e pelas principais companhias independentes.

Interpretou as grandes dramaturgias, de Anton Tchekhov a August Strindberg, de Luigi Pirandello e Eugene Ionesco a García Lorca, sem esquecer os “young angry men” britânicos que prenunciaram a década de 1960. Fez os clássicos, de Gil Vicente a Shakespeare.

Contracenou com os grandes atores da época, Lucília Simões, Maria Lalande, António Silva, João Villaret, Assis Pacheco, Amélia Rey Colaço, Palmira Bastos. Trabalhou com Henriette Morineau e Adolfo Gutkin, mantendo-se atenta e atuante, nas novas correntes.

Entre 1958 e 1959, com Rogério Paulo, fez parte do Teatro de Sempre, dirigido por Gino Saviotti, uma das primeiras companhias independentes, tendo entrado em ‘O Gebo e a sombra’, de Raul Brandão, e na estreia portuguesa de “Seis personagens à procura de um autor”, de Pirandello – desempenho premiado pelo antigo Fundo de Teatro.

No início da década de 1960, com outros atores, como Ruy de Carvalho, Fernanda Alves, Rui Mendes, Armando Cortez, Morais e Castro e de novo Rogério Paulo, esteve na fundação do Teatro Moderno de Lisboa, que punha em cena autores como Fiodor Dostoievski e Friedrich Durrenmatt, em sessões ao fim da tarde, no Cinema Império, em Lisboa.

Reviveria a experiência no livro ‘Um Marco na História do Teatro Português’, que escreveu com o crítico Tito Lívio, em 2009.

‘Amor de Dom Perlimplim com Belisa em seu Jardim’, de Federico García Lorca, ‘O tinteiro’, de Carlos Muñiz, ‘Os três chapéus altos’, de Miguel Mihura, ‘O render dos heróis’, de José Cardoso Pires, ‘A Forja’, de Alves Redol, estão entre textos que levou a cena, desafiando o peso da ditadura e da censura.

Em 1985, o papel de ‘Virgínia’, de Edna O’Brien, deu-lhe o Prémio da Crítica.

Nos anos seguintes, destacam-se ainda os desempenhos em ‘Espectros’, de Henrik Ibsen, em ‘O jardim zoológico de cristal’, de Tennessee Williams, ‘As espingardas da mãe Carrar‘, de Bertolt Brecht, e a revelação de cada vez mais importantes textos, com encenadores como Carlos Avilez, do Teatro Experimental de Cascais, Jorge Listopad, na Casa da Comédia, ou com João Lourenço, no Novo Grupo/Teatro Aberto, com quem regressaria a Brecht, em ‘O círculo de giz caucasiano’, e com quem faria “Comédia à moda antiga”, de Alexei Arbuzov, e ‘Confissões numa esplanada de Verão’, a partir de Tchekhov, Strindberg e Pirandello, entre outras peças.

Foi aliás com João Lourenço e no Teatro Aberto, que se despediu dos palcos, ao entrar em ‘Copenhaga‘, de Michael Frayn, na estreia, em 2003, e na reposição da obra, em 2005.

Para trás, ficava também a televisão onde, na década de 1960, dera corpo a personagens de Eugene O’Neill, Óscar Wilde, Ivan Tourgueniev e onde, nos anos de 1980 e 1990, fizera telenovelas como ‘Passerelle‘, ‘A banqueira do povo’ e’A lenda da garça’.

A escrita surgiu na década de 1980, durante um período de permanência em Paris, quando escreveu o primeiro livro de memórias, ‘Retrato inacabado’. A este seguir-se-ia ‘No palco da memória’, já nos anos 2000 e, em 2017, ‘Vozes dentro de mim’. Os três títulos deram origem ao espetáculo ‘Carmen’, no Teatro da Trindade, em Lisboa, de homenagem à atriz, em 2018.

Para Carmen Dolores, o processo de transformar o que viveu e sentiu em palavras, não era mais do que um “prazer”. Não escrevia por obrigação, como disse no festival Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, em 2013, de que foi convidada, mas porque se sentia “mais feliz” quando o fazia.

Crescera rodeada de livros, como disse então em entrevista à Lusa.

Na altura, oito anos depois da despedida dos palcos, era da poesia “lida em voz alta”, tal e qual como o fizera no início da carreira, de que Carmen Dolores sentia saudades.

Gostava de “continuar a aprender” e a aperfeiçoar-se, através de tudo o que a rodeava.

“Quando era rapariga, era demasiado tímida e não sabia sorrir”, disse Carmen Dolores à Lusa, nesse dia de fevereiro de 2013, na Póvoa de Varzim. Mas passara a fazê-lo permanentemente, porque a ajudava a viver.

Em julho de 2018, Carmen Dolores foi condecorada com as insígnias de Grande-Oficial da Ordem do Mérito, no âmbito de uma homenagem no Teatro da Trindade, que incluiu a estreia da peça ‘Carmen’. A atriz tinha já recebido o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, a Ordem de Ant’Iago de Espada e a Medalha de Ouro da Câmara Municipal de Lisboa.

Entre outros prémios, Carmen Dolores recebeu, em 2016, o Prémio Sophia de Carreira, da Academia Portuguesa de Cinema, o Prémio António Quadros de Teatro, da Fundação António Quadros, a Medalha de Mérito Cultural, da Secretaria de Estado da Cultura (1991), o Troféu de Prestígio da revista Se7e, o Prémio Gazeta da Casa da Imprensa, pelo desempenho de ‘Jardim Zoológico de Cristal’, de Tennessee Williams, e o Globo de Ouro por ‘Copenhaga’. A Federação Iberolatina Americana de Artistas deu-lhe o prémio carreira, em 1998.

Deixe um comentário