As ‘Cartas Portuguesas’ são cinco missivas de amor, “cheias de ardor”, alegadamente escritas por uma freira de um convento de Beja a um aristocrata ao serviço do exército francês “num período culminante da Guerra da Restauração”, cujo nome não é revelado, e que foram publicadas pela primeira vez em 1668 por um editor parisiense.
Na opinião de José António Falcão, as “Cartas Portuguesas” são “um dos primeiros exemplos, senão o primeiro, de um género original, a novela epistolar” que surgiu no século XVII”, referindo ainda a “aura criada em torno da sua autoria”.
Para uns, estas cartas são uma criação apócrifa, ou seja, cuja autoria não é a da freira de Beja, mas sim de origem francesa, outros “veem nelas o reflexo da identidade portuguesa”.
A edição original francesa esclarece desconhecer o destinatário das cartas e quem as traduziu, mas a dúvida da sua autoria paira entre a freira portuguesa e Gabriel-Joseph Guilleragues, pseudónimo de G.-J. Lavergne (1628-1685), que foi embaixador de Luís XIV de França no Império Otomano, e cujo talento literário era apreciado, tendo sido redator chefe da “Gazette de France” e referenciado como tradutor das “Cartas” numa “edição pirata” de 1669.
Para Falcão, “a história das ‘Cartas Portuguesas’ constitui em si uma novela”, referindo que Mariana “recorreu a uma prosa distinta da usada habitualmente na época” com uma estrutura sem períodos nem parágrafos, o que “suscitou críticas por parte dos literatos”, nomeadamente Gabriel Guéret.
Falcão faz referência à evolução da crítica histórica e literária sobre as “Cartas”, que assumiram interesse em Portugal no século XIX, com Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco, que consideraram terem sido escritas originalmente em francês.
José António Falcão cita os contributos de vários investigadores sobre esta temática, designadamente Teófilo Braga, Luciano Cordeiro, responsável pela “redescoberta e reinvenção nacional da freira de Beja”, e Edgar Prestage que escreveu sobre Mariana na Enciclopédia Britânica em 1911.
Em 1935, o investigador e tradutor António Gonçalves Rodrigues considerou as ‘Cartas’ uma “fraude literária”, mas em 1940 “Mariana surge canonizada na Exposição do Mundo Português”, no mesmo ano em que foi publicada uma obra de Manuel Ribeiro defendendo a autoria da freira.
No sentido contrário argumentaram Frédéric Deloffre e Jacques Rougeot, numa edição crítica de “Cartas Portuguesas”, saída em 1962, à qual contrapôs António Belard da Fonseca.
“Importantes” foram ainda os contributos de Hernâni Cidade, Eduardo Prado Coelho, que considerou as “Cartas” “uma das mais decisivas contribuições portuguesas para a sensibilidade europeia”, realçando a “dimensão luso-francesa” da obra, Alexandra Seabra de Carvalho que “acertadamente” as referiu como uma “versão saída da mão de Guilleragues, tradução-adaptação-(re)criação literária”, admitindo que a correspondência entre a freira e o militar podia ter sido mais volumosa, e Eduardo Lourenço.
Para José António Falcão, Guilleragues teve um “papel decisivo” na obra, quer como tradutor, adaptador ou até “autor”, pois a intervenção do francês levou a que as ‘Cartas’, com “uma matriz feminina e portuguesa” tivessem a narrativa que se conhece e as celebrizou.
Esta dúvida autoral e o destinatário das cartas de amor, tornaram-nas desde logo um “surpreendente êxito literário”.
O destinatário das cartas seria Noël Bouton, um aristocrata “que se destacara na corte do Rei-Sol [Luís XIV], principalmente depois dos feitos em Portugal”.
A publicação pelo livreiro francês Claude Barbin foi “um acontecimento editorial”, numa altura em que “a teoria das ‘belles infidèles’ ganhava adeptos na literatura” e “o trazer a público uma paixão proibida teve uma enorme repercussão, tendo sido muito debatido” nos salões literários.
As “Cartas” tiveram em 1669 uma “edição pirata” em Colónia, na Alemanha, por “um editor fantasma”.
Apesar da dúvida autoral e interrogações sobre a capacidade galanteadora de um aristocrata visto como “quase um tosco homem de armas” mais conhecido pelas suas proezas militares, as “Cartas” originalmente escritas em francês conhecem as suas primeiras versões em português através de exilados portugueses em Paris, designadamente o poeta Filinto Elísio, em 1819, e José Maria de Sousa Botelho (1758-1825), em 1825. “Ambas são peças de grande qualidade literária que reivindicam para Portugal a glória da autora”, assina José António Falcão.
A edição agora saída em Espanha, na editora La Umbria y La Solana, de Madrid, que já editou Lídia Jorge, João de Melo, Dulce Maria Cardoso, Rui Lage e José Luís Peixoto, “deverá em breve” conhecer uma versão portuguesa, segundo fonte editorial.
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